segunda-feira, 16 de junho de 2014

Cê já sabe em que língua vai xingar o juiz?

visão: Beto Vianna
revisão: Daniele Martins


Fifa é só uma sigla. Tal como a CIA, o ISSN, o INSS ou o SNI. Na maioria dos casos, esse é o máximo de importância que a Fédération merece de todos nós. Infelizmente, tal como outras instituições acima sigladas, a Fifa tem o hábito cretino de se meter na vida dos outros, nem sempre com bons resultados. Para além de traçar perímetros privados na casa pública alheia, a Fédération é campeã mundial em calar a pluralidade linguística de seus Estados associados, entendendo uma, ou, na pior das hipóteses, duas línguas. Gaba-se de ter mais filiados que a ONU (e tem), mas só consegue abrir a boca usando um terço das línguas de trabalho de sua sigla irmã.

Mas negócio é business. Na hora de meter a mão na grana, fechar patrocínio e surrupiar divisa de país-sede, não há que perder tempo com esse mundaréu de dialetos que povoa as republiquetas de banana, majoritárias no universo de filiadas. Todas elas, afinal, votam em inglês (ou francês, na pior das hipóteses). E a parcimônia linguística não é privilégio dos países-membros. O bom exemplo vem do alto-escalão. O brasileiro Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange bem podia usar, no trabalho, o carioquês das Laranjeiras, onde foi criado. Mas é com uma língua de comércio, o inglês (ou, na pior das hipóteses, o francês), que o padrinho desmandava no império da bolada. E cê já sabe em que língua vai xingar o juiz?

Eles falam aqueles dialetos 

É. “Eles” falam “aqueles dialetos”. E o que nós, cidadãos de bem, queremos dizer quando dizemos “dialeto” é: língua sem importância. Língua importante (ou apenas “Língua”) é aquela que se aprende na Cultura Inglesa, na Aliança Francesa, no Goethe-Institut, no Instituto Cervantes, ou, na pior das hipóteses, na Fundação Torino. Somos tão acostumados ao uso internacional das línguas europeias, que não duvidamos da sua exclusividade nas relações exteriores. Por isso o chinês (e há muito, o japonês), com pinta de recém-ingressado na confraria do capital global, se arrisca a virar ex-dialeto. Já é quase Língua, pro nosso gosto. E eu me esquecia: essas línguas de fazer compras são também (dizemos nós) “línguas de cultura”. É com elas que se escuta o canal Sony, ou, na pior das hipóteses, se vai ao Louvre. E o português? Sim, esse também é Língua. Pode não ser o fino da bossa, mas ao menos tem suas raízes bem fincadas do outro lado do Atlântico Norte. E ao menos quando não circula feito bicho solto, cheio de erros de concordância, na boca mole do povo. Nós, brasileiros, não somos totalmente selvagens. Camões por certo não era.

E então, quem são “eles” que falam “aqueles dialetos”? Por falar nisso, cê já tem ideia em que língua vai xingar o juiz?

Eles

Eles são os africanos. Nós, brasileiros, conhecemos “eles” muito bem. Nossos tataravós conheciam ainda mais (por propriedade ou na pele), quando ainda havia por aqui os boçais. Na gíria de antanho, boçais eram os pretos que eram mais africanos que menos. E isso queria dizer, entre outros barbarismos, não saber português. Será difícil entender por que “boçal” virou sinônimo de estúpido? Se um falante de dialeto não fala A Língua, deve ser sinal de estupidez. Achou isso estúpido? Pois é. Mas não vamos tirar conclusões apressadas sobre a capacidade mental dos nossos antepassados. Melhor ouvir o que dizemos hoje, que é mais didático.

Como a Pittacos teima em não me dar espaço para falar dos 56 países-membros africanos da Fédération (dois a mais que a ONU), vou me concentrar em três países da África que vêm à Copa este ano. E então meu texto, se não tiver outro interesse, irá prestar esse serviço de reportagem atualíssimo. Outra coisa: pra não ficar repetindo “dialeto” o tempo todo, vou chamar dialeto de “língua”, com l minúsculo, e Língua de “Língua”, com L maiúsculo. Assim, se economizamos em palavras, conservamos a distinção de classe. Coloquei os nomes dos países nas respectivas Línguas, para contrastar ainda mais a realidade do lugar com a nossa bem educada estupidez.

Algérie

Ou al-Jazair, em árabe (língua materna de cerca de 300 milhões de pessoas no mundo todo, e talvez o triplo disso em número de falantes secundários, o que nas duas contas ultrapassa vergonhosamente a maioria das Línguas; um dia daremos um jeito nessa supremacia bárbara).

Começo pela Argélia, não por questões alfabéticas (palavra formada com as duas primeiras letras da escrita usada no árabe, alif e bet), mas por ser o país africano mais seco em número de línguas: 17, apenas, e uma Língua, o francês. A secura facilita nossa questão de fundo, mas meio invertida, que é saber como os jogadores iriam (ou poderiam, não fosse a ditadura monotônica da Fédération) xingar o juiz. E facilita introduzir uns termos técnicos, que irão valer pros outros países.

A França estabeleceu uma colonização brutal na Argélia, assunto que ultrapassa a estupidez-tema deste texto. Confiscou terras e reduziu a população muçulmana (ali há mil anos) e os bérberes (há dez mil) à categoria de subgente, até ser devidamente chutada do país, lá pela Copa de 62. O resultado é que hoje há, se tanto, dez mil falantes de francês num país de 30 milhões de habitantes. A taxa de letramento é de 70%, e, portanto, os argelinos cultos devem estar lendo noutra língua. Em árabe, é claro. A língua oficial é o árabe clássico, e a língua veicular (usada pela grande maioria da população) é o argelino, um dialeto (não por desimportante, mas por ser variante) do árabe. Entrando pelo deserto, você se arrisca a encontrar o kabila (cinco milhões de falantes), o tachawit (dois milhões) e outras línguas bérberes, todas com milhares de usuários. Já ouvi locutor esportivo irradiar que na Argélia “fala-se francês”. No sonho dele. O goleador Islam Slimani, jogador do Sporting português (de que sou torcedor), nasceu na capital Argel e deve falar, de berço, árabe argelino. Com o perdão das senhoras muçulmanas presentes, ao juiz ele dirá algo como اللعنةعليك.

Côte D´Ivoire

E chegamos ao sul do Saara, a África negra, e os problemas se avolumam, bem como as delícias. No final do século XIX, os europeus cortam o continente africano como uma bisnaga sangrenta e repartem o pão e o vinho entre si, bons cristãos que sempre foram. Nasce, entre outras fatias, a África Francesa Ocidental, que inclui a nossa Costa do Marfim. Com a ajuda da Aliança Francesa (instituição desmascarada por Walter Rodney como coviolentadora da África ao lado das minas terrestres) a colonização deixou, de legado, o francês. Oficial, até hoje. Que bom, os marfinenses têm uma Língua pra conversar com o Blatter.

Nossa incorrigível estupidez hollywoodiada, escolarizada e informatizada é pensarmos que até a chegada do deus branco só havia ali tribos de encolhedores de cabeças. A região é reconhecidamente povoada há 15 mil anos e conhecida desde os egípcios e romanos como efervescente rota comercial. Há uns mil anos surgiram impérios como o de Mali e Songhai (muçulmanos), os Jula (um povo Mandé) fundaram um império e vários reinos, além da presença dos Ashanti e dos nômades bérberes. Sim, os franceses detonaram o lugar, mas mandar pelos ares um contexto linguístico milenar seria muita pretensão.

Com 20 milhões de habitantes, a Costa do Marfim tem 80 línguas e uma Língua. Essa tal, a oficial, é falada por 17 mil pessoas. Mas, como acontece há mil anos, se for ter Copa por lá, prefira aprender o jula, que é língua materna de dois milhões de pessoas e falado por sete milhões como segunda língua. O baulé é falado por outros dois milhões de marfinenses, o dan, por 1,5 milhão, e o aniyin já deve ter um milhão de falantes. E seguem dezenas de línguas na casa das dezenas e das centenas de milhares de falantes. Esse mundo de gente deve ser louco em ficar barbarizando em tantos dialetos (ops!) línguas desimportantes, no dia a dia, de dia e de noite, todo santo dia.

O crack Didier Drogba nasceu em Abidjan, cidade cosmopolita, que os doutos dizem ser “a terceira cidade de fala francesa do mundo”. No sonho deles. O nome da cidade nasceu de uma estupidez. Um explorador perguntou (em alguma Língua) o nome do lugar a alguém que passava. O cara, sem entender aquele nhenhenhém europeu, respondeu m’bi min djan (“estou cortando folhas”) em ébrie, língua falada hoje por cem mil pessoas. Dá pra ver que é inútil xingar um juiz da Fédération em ébrie.

Ghana

O que foi dito da Costa do Marfim pode-se dizer de Gana, com algumas superlatividades.  Há ali 80 línguas e uma Língua.

O inglês, Língua e oficial, é falado por um milhão de pessoas, mas para a maioria, só como segunda língua. O que nos deixa com 23 milhões de pessoas que não precisam saber que the book is on the table, ainda que, com uma taxa de letramento de 60%, haja, de fato, livros ganeses em mesas ganesas. Mas ler o quê, se não há “língua de cultura”? Não há em nossos sonhos. O akan, língua do povo Ashanti, que estabeleceu reinos milenares na região, é escrito há séculos, seja em árabe ou alfabeto romano, além de um sistema paralelo próprio, o adinkra, símbolos que representam conceitos e aforismos. Hoje, quase metade do povo ganês joga conversa fora em akan. Gana é palco de vários grupos de línguas da grande família Níger-Congo: as línguas Kwa (que incluem o akan), as línguas Gbe (que têm o ewé, falado por cerca de três milhões de ganeses), as línguas Gur (do povo Dagomba, que também ergueu império na região e é também milionária em falantes), as línguas Mandé, e outros grupos, tão importantes quanto. No norte, o hausa, língua da família Afro-Asiática, é usado a rodo como língua de contato entre ganeses de línguas diferentes. E no país surgiu uma língua de contato baseada no inglês, usada por milhões de pessoas (favor não confundir essa joia com o dialeto dos Beatles: o vocabulário tem base inglesa, mas a gramática é bem mais divertida).

Os nomes ganeses dão um show à parte. Num sistema que parece remontar tanto aos antigos Ashanti quanto ao povo Ewé, o primeiro nome da criança é o dia da semana em que nasceu. Assim, de segunda-feira a domingo, temos Kwadwo, Kubbena, Kwaco, Kwao, Kofi, Kwamin e Kwashi. Por exemplo, Kofi Anan, ex-secretário-geral da ONU, tem o mesmo nome do amigo selvagem de Robson Crusoé. O sistema se espalhou pelo Caribe, principalmente na Jamaica, e até nos USA (omg!) usa-se a antroponímia ganesa, educadamente traduzida na Língua do colonizador britânico.

Kwadwo “Kojo” Asamoah, o Segunda-feira de Gana, jogador da Juventus, nasceu na urbanidade multicultural de Accra (estou meio desconfiado da informação de que as estrelas africanas nasceram todas nas capitais). Digamos, com alguma margem de erro, que Kojo ofenderia o juiz com elegância xingando em akan. Ou em hausa, se o bonito é ser internacional.

Nibe ni yio je ko Copa

Vai ter Copa pra dois outros selecionados africanos: Camarões e Nigéria. Dos falares desses países, é até covardia falar. São 280 línguas em Camarões e 520 na Nigéria. Sim, 520. Claro que você pode dizer, “Ah, mas eles falam aqueles dialetos”. Bom, já discutimos sobre isso. Só como exemplo rápido, 13 milhões de pessoas falam alguma variedade do fulani nos Camarões. E as três grandes línguas nigerianas, o hausa, o igbo e o iorubá, são faladas cada uma por cerca de 20 milhões de pessoas. Tem literatura, vencedor de prêmio Nobel, civilizações milenares e o escambau. E são tipo exportação. Ou você nunca comeu um acarajé (acara, “bolo de feijão”, je, “comer”)?

Uma das sacadas nigerianas é a política linguística que, bem ou mal (pior do que mereceria), respeita essa realidade estonteante, escutando a importância de cada língua para as pessoas que a utilizam. Em cada região do país, a principal língua local é o meio de instrução no ensino primário. No segundo grau, outra língua regional nigeriana é introduzida, e o francês é oferecido como segunda língua. O inglês, Língua oficial, é o meio de instrução tanto no ensino secundário quanto no superior, mas na universidade os alunos têm oportunidade de aprender uma grande língua africana não nigeriana, como o árabe, o fulani ou o swahili. Ni nzuri sana!

Uma estupidez nigeriana, muito semelhante à que se pratica no Brasil, é não dar o status devido ao falar que, de fato, é a grande língua nacional: o naija. De base vocabular inglesa e gramática africana, o naija é falado por todo o país, por 30 milhões de pessoas (mais que qualquer uma das “três grandes”) e amplamente utilizado como língua veicular, ou de contato. É língua franca entre as classes mais pobres das grandes cidades, e língua corrente dos habitantes dos vilarejos na zona rural em muitas regiões do país. Só não é plenamente aceito por conta do forte preconceito que o naija sofre das classes finas e educadas – os coxinhas nigerianos -, tido como “inglês corrompido” e descartado em todas as esferas de poder como candidato a língua da nação.

Se você prestou atenção a essa descrição do naija, vai se lembrar de uma língua (e suas variantes) falada pela maioria dos brasileiros, e que é motivo de chacota nos salões empetecados, na imprensa, e até no Facebook e no Diário Oficial da União. “Português errado” é o que dizemos da língua usada no dia a dia, de dia e de noite, todo santo dia, pela maior parte de nós mesmos! Não é estúpido isso? Pois é. O mais engraçado é que o outro português – o “correto”, A Língua – é exaustivamente martelado por doze anos seguidos na escola e só entra na cabeça de uns pouquíssimos eleitos. Deve ser a língua das esferas, de Pitágoras. Um trem divino pra burro.

Quer fazer um teste? Tente xingar um juiz brasileiro dizendo vai-o tu, ou a torcida do Corinthians dizendo ide-o vós, e verás que não serás compreendido (e não traduzirei, porquanto são expressões chulas).

Sua excelência, o juiz

O personagem principal deste texto é, de fato, o principal: aquele que apita no jogo. Mas, como cantou o saudoso Manduka no samba “Mané Garrincha”, “não há juiz nesse mundo/ que tire do povo esse gol”. Então, vejamos. Um dos juízes convocados para o mundial em solo pátrio é Bakary Papa Gassama, da Gâmbia. No site da Fédération, consta que a “língua natal” do magistrado esportivo é o inglês. Será?

A Gâmbia tem uma população de um milhão e meio de pessoas, dez línguas e uma Língua. O mandinka é falado por metade da população, o fulani por 300 mil pessoas, o wolof por 200 mil, e o inglês tem mil falantes como língua materna. Se esses dados estão corretos, eu aposto mil reais contra o seu um real como o juiz Papa Gassama não está entre os menos de 0,1% da população que balbuciou suas primeiras palavras na Língua de Shakespeare. Em suma, pode xingar o rapaz em mandinka. Com uma probabilidade de 50%, Papa Gassama vai levar o desaforo pra casa.

Como o preconceito não tem limites, e a arena de futebol é o templo das bananas atiradas (e, às vezes, engolidas), sempre podemos dizer que pouco nos dá, torcedores da potência canarinho, a língua que fala um juiz africano. Quem vai apitar a final Brasil x Uruguai será, na pior das hipóteses, um italiano, falante europeu legítimo de uma Língua. E essa nem carece muita tradução, posto que muitos brancos entre nós (brasileiros e uruguaios) são de legítima ascendência cosa nostra. Tutti gente de bem.


O árbitro italiano convocado é Nicola Rizzoli. O cara nasceu na comuna de Mirandola, um pitoresco vilarejo (todo vilarejo europeu é pitoresco) na província de Modena, norte da Itália. A tradição, a cultura e a erudição de Mirandola deram ao mundo seu filho mais ilustre, Giovanni Pico della Mirandola, filósofo renascentista de notório saber. Sim, a vida é bela. E bela é a mentira que o site da Fédération nos conta ao jurar que “italiano” é a língua natal do signor Rizzoli. Se ele nasceu onde nasceu, deve ter nascido falando emiliano, um dialeto! (e não sou eu que o digo: os italianos xingam suas próprias línguas de “dialeto”). Vai ser complicado xingar o signor Rizzoli. O emiliano não soa como o italiano, pois é uma língua que pertence ao grupo galo-itálico (o italiano é  do grupo ítalo-dalmático). E pode nem haver dicionário, pois o emiliano é um idioma meio jogado às traças, quase que só falado na região, mas seguramente na cidadezinha de Miràndla, que é como chamam Mirandola “em dialeto”.

Concluindo, se o centroavante uruguaio escorregar na pequena área e o juiz for na dele, você pode gritar sem medo de errar: socc´mel! Isso não é emiliano, é bolonhês. Mas o signor Rizzoli vai entender, e eu garanto que é muito feio.

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Post scriptum: a palavra “xingar” entrou para o português, que é uma língua indo-europeia do ramo itálico, a partir do quimbundo, que é uma língua níger-congolesa do ramo bantu. Nenhuma das duas é um dialeto.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Ferra-se cavalos



Beto Vianna

Não há melhor remédio para o preconceito que sofrermos o dito cujo na carne. José Bento Monteiro Lobato, apesar do que dizem os politicamente corretos, é um bamba da nossa literatura. Nós, leitores, não merecemos ter a sua boa prosa proscrita de onde quer que seja. E apesar do que dizem os politicamente incorretos, Monteiro Lobato foi, sim, um pernicioso racista (aliás, um racista ativista), e não só pelos padrões da época, a ponto do país campeão no quesito segregacionismo (os EUA) rejeitar a publicação de uma obra sua, justo por carregar nas tintas do ódio à negra gente.


O que poucos dizem, pois esse assunto é mal digerido tanto por corretos quanto incorretos, é que Lobato também lutou contra um preconceito. E nesse caso, seu afazer literário dá-lhe boas credenciais, pois a ignorância com que se batia Monteiro Lobato leva o nome de preconceito linguístico (no livro “Preconceito linguístico”, Marcos Bagno cita o escritor a rodo; perdoe se roubo dali umas tantas ideias).


No longínquo ano de 1924 (quando, segundo os gramáticos de hoje, ainda não se judiava da língua de Camões), Monteiro Lobato escreveu o conto “O colocador de pronomes”, uma crítica aos prescritores da “língua culta” e do “português correto”. O personagem-título, um certo Aldrovando Cantagalo, vive guerra sem trégua contra os usuários da língua, supondo que esses deturpam o “verdadeiro idioma” (veja como o texto é atual!), ou seja, o conjunto anacrônico e incoerente de regras embalsamado nos manuais de gramática. A figura ridicularizada por Lobato encontra-se personificada hoje por tantos e bem-pagos consultores de gramática dos meios de comunicação. Talvez por isso, tal como Aldrovando, e como compensação por sua canhestrice linguística, eles tenham esses nomes psicodélicos, como Pasquale Cipro Neto e Dad Squarisi. Essas pessoas, com medíocre compreensão da linguagem (por descuido ou, quem sabe, razões de mercado), despejam rios de preconceito sobre as variações do português brasileiro, confundem língua com ortografia, e, o mais grave, o fazem com toda a legitimidade e repercussão que a velha elite e a grande imprensa lhes concedem.


Se você acha que isso é puro preconceito meu contra os gramáticos, ouçamos o grande Monteiro Lobato. No conto mencionado, Aldrovando encasqueta com uma tabuleta que diz “Ferra-se cavalos”. Quer porque quer corrigi-la, botando o verbo no plural (como ensinam as gramáticas de antanho e de hoje), ao que replica o ferreiro: “V.S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu”. Sabe o ferreiro, nem tanto o gramático, que cavalos não têm o hábito de se ferrar sozinhos.


Aldrovando veio ao mundo, diz o conto no início, “em virtude de um erro de gramática”. Também seu criador viveu um trauma com o “português correto”, reprovado, no exame para o Instituto de Ciências e Letras, em português oral!

Se Lobato não sabe português, e o resto de nós, humildes cordeiros?



Publicado em O Tempo, 09/02/13

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O rei mídia


Beto Vianna

Há muitos anos havia um rei, mau como todos os reis. Esse rei, de nome Midas, fizera um favor a Dionísio, e o deus retribuiu concedendo-lhe um pedido. O resto da história, a leitora ou o leitor devem conhecer: Midas quis mudar em ouro tudo o que tocasse. E o deus, brincalhão como todos os deuses, não titubeou em atender o monarca. Não apenas a comida, a bebida, as mulheres (e a filha) do desafortunado rei viraram ouro, privando-o de fome, de sede e de amor, mas o mundo parecia a Midas, de agora em diante, um só: ouro, que seja, mas, principalmente, um só.
A desgraça fictícia do rei lança sombras no nosso mundo, por direito, real, e a história de Midas só é fantasiosa em seus detalhes químicos (não é todo dia que vemos pessoas transformando suas filhas em ouro). Sofremos de um mal parecido, cada vez que tropeçamos em informações e sentimentos demasiado uniformes, repetidos, e, por isso, com brilho de incontestáveis.
O mundo monótono da informação massificada, mediado pelas empresas de comunicação e a serviço de interesses mais silenciosos, ganhou um aliado recente, embora mais arredio, com a explosão da internet e de suas filhas douradas, as redes sociais. Sim, a internet democratiza o espaço de conversas. E sim, ao contrário da tradicional mass media, há mais gente on-line com o direito de dizer, não só de ouvir. No entanto, observa-se um fenômeno igualmente reacionário, que tem sido explorado pelas corporações do mundo livre (entre elas, o oportunista braço da mídia), em que as pessoas veem-se magicamente felizes sentindo e opinando as mesmas coisas, reproduzindo convicções confortáveis. Tome, como péssimo exemplo, os preconceitos, os ódios à diferença, os julgamentos de costumes, que se alastram na rede como fogo em capim seco. Nesses casos, a “democratização do dizer” emburrece tanto ou mais que a velha atitude passiva do telespectador.

A vida acrítica nas redes tem elementos mais perversos que a ditadura da TV. Esta, bombardeando-nos com programas estúpidos e noticiários tendenciosos, ao menos invade só o momento da recepção. Como acontece com os livros (há livros tão ruins quanto a programação da TV), após ver, ouvir, ler, temos a oportunidade de debater com as outras pessoas. Esse é o momento da socialização, em que retramamos nossa cultura. Nas redes sociais, as opiniões são logo engolidas e cuspidas (é dizer: curtidas e compartilhadas) com pouca ou nenhuma mediação da conversa com gente real ou virtual.
Não sou pessimista em relação ao novo universo em rede, de que, aliás, participo com gosto. A lenda de Midas oferece uma saída quando Dionísio, cansado da brincadeira, conta ao rei que tudo pode voltar ao que era se ele se banhar nas águas de um certo rio. Quem sabe nossos deuses também se cansem de viver em um mundo só? Quem sabe a diversidade seja, daqui pra frente, recebida com a alegria que ela merece? Tudo é possível nessa nossa realidade.

Publicado em O Tempo, 25/10/2012

sábado, 8 de setembro de 2012

Belo Horizonte vai ser 10


Livro de Graça na Praça comemora 10 anos de cultura partilhada em BH

Beto Vianna

Iluminuras

Zé Mauro é um iluminado. Não como no filme do Kubrick, mas no sentido da história das culturas, dessa partezinha boa da história ocidental em que é bonito o saber, é bonita a educação, é bonita a literatura. E bonito seria se todo esse conhecimento partilhado fosse partilhado por muito mais gente.
Foi com essa ideia na cabeça que, em 2003, o professor José Mauro da Costa juntou uns trocados e mandou publicar Ouvindo estrelas, um ajuntado de poemas que o Zé costumava dizer na escola de sua infância. Distribuía os exemplares sem muita ciência - um aqui, outro ali, um esquecido no branco da praça, outro escorrega na bolsa da amiga - mas a ideia rendeu, pois no ano seguinte Zé Mauro e alguns amigos editavam Atrás da porta, já contemplando a interação do público com os autores, formato que faz, até hoje, a alegria anual dos domingos na praça. Desde 2005, escritores convidados escrevem de graça seus contos para a obra, que é publicada, distribuída, autografada e assuntada de graça, para a população, na praça da Liberdade. Nasce e cresce o Livro de Graça na Praça.  
Dali até aqui, umas mudanças, próprias do crescimento. Os autores já não bancam sozinhos o prelo, acudidos pela cavalaria dos parceiros (hoje, o Sesc-Senac, a Aletria, a Imprensa Oficial, a Academia Mineira de Letras e o hotel Liberty). Aos escritores convidados, somam-se, desde 2006, três ganhadores do concurso nacional promovido anualmente pelo Sesc-Senac. Ao todo, foram 150 mil volumes distribuídos em Belo Horizonte. Livros “adultos”, obras para a gurilândia e os cordéis, inclusive um em braile, para ser acariciado por um universo ainda maior de leitores.
Entre os quase 200 contistas, cronistas, poetas, cordelistas e outros anarquistas que já participaram ou participam do projeto, muito literato do alto-clero, como Affonso Romano de Sant´Anna, Frei Betto, Olavo Romano, Fernando Brant e Ângela Vaz Leão. Mas aqui você se arrisca a encontrar dezenas de velhos desconhecidos do grande público, além de novos escritores cheios de letras pra dar. A turma do cordel é afiadíssima, muitos da Academia dos Cordelistas do Crato, no Ceará, gente que há anos pendura sua literatura Brasil adentro.
Aniversariando 10 anos, o Livro de Graça na Praça rende homenagem à cidade natal, com o título Belo Horizonte, à sua missão carinhosa, com o infanto-juvenil Todo livro ama crianças (organizado por Ronaldo Simões Coelho), e a si mesmo, com o cordel Livro de Graça na Praça: 10 anos, de Josenir Lacerda.

Só prós no projeto?

Sempre há umas questões. Essa é uma iniciativa que pesa no lado certo da balança da educação? Acho que sim. Uma crítica comum (já ouvi muito) é que há um componente paternalista ou assistencialista nessa história de pura e simplesmente distribuir livro de graça. Outra (contraditória à primeira) diz que o público que frequenta a praça da Liberdade nem tão carente de letramento é assim. Ao lado desses dois poréns - legítimos, a meu ver - há a desconfiança de que o projeto não é, de fato, franciscano, que organizadores, autores e colaboradores estão ganhando umas verdinhas no negócio. Começando desse último ponto, minha opinião (não partilhada pelos organizadores), é que essas pessoas deveriam, sim, ser remuneradas por esse trabalho de valor. Muita coisa ruim (em todos os sentidos) é muito bem paga, como bem sabemos. E quanto ao próprio valor? Cumpre mesmo essa função socializante, democratizante, o afazer do Livro de Graça na Praça?

Livro de Graça e boa educação

Assistencialismo só é palavra feia quando não tem efeito libertador para quem assiste e é assistido. No caso do Livro de Graça na Praça, há um mundo de culturas redentoras alimentado pelo simples fato de escritores e leitores (mesmo os iletrados) reunirem-se num mesmo lugar, numa manhã de domingo, para se debruçarem em torno do objeto-livro. O que torna excludente a nossa educação é insistir (isso já leva uns 200 anos) na crença de que a maioria da população não “sabe português” e, em vez de prover os meios de solucionar esse duvidoso problema, penalizar quem “fala errado”, negando a validade de sua língua materna.
Devo dizer, como linguista, que língua não se aprende na escola, mas em casa e na rua. Pelo menos tem sido assim nos últimos 100 mil anos da humanidade. A função da escola, e de espaços como o Livro de Graça na Praça, é oferecer as condições de manipular (entender, produzir, criticar) esse universo de meios e mensagens que ultrapassa os recursos da língua materna, pois são formas linguajeiras produzidas com uma tecnologia de ponta, complicadíssima, chamada cultura letrada.
Rico nem precisa da escola. Ele já tem seus canais privados de letramento, na forma de livros, filmes, discos, roupas, aparelhos eletrônicos e amigos igualmente ricos com quem conversar. E ainda complementa sua vida letrada com cursinhos de judô ou balé (ou o que seja). Dizia Darcy Ribeiro, é para o zé povinho que devemos, urgente, ampliar as possibilidades de apropriação da cultura culta, se é que queremos (nem todos queremos) que ele faça mais e melhor do que só nos servir.
A crítica de que a praça da Liberdade é antro da elite empalidece quando prestamos atenção à função libertadora do projeto. Envolver-se no universo do livro e da literatura é ganho pra quem merece ganhar, e o Livro de Graça na Praça, promovendo esse espaço de conversação, atua menos como (perdoe a metáfora bélica) flecha acertando um único alvo que como arma biológica, espalhando doença gratuita população afora. Os efeitos devem, espero, ser devastadores.
Belo Horizonte pode deixar de ser a metrópole do automóvel, das autopistas e das pedras debaixo do viaduto, e se tornar uma grande roça letrada, lida e escrita por seus habitantes, celebrando alegre (e com esperança) os primeiros 10 anos de livros de graça na praça. Este ano a coisa acontece dia 9 de setembro, a partir das 9 da manhã, na praça da Liberdade. Como emenda o cordelista Edésio Batista, “Enfim a festa se faça/ Em praça cheia de gente/ Com livro como presente”.


Publicado no jornal O Cometa Itabirano, ago/2012

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Que p de língua sou eu?


Política e preconceito no país do português 


de Beto Vianna

“Há 800 anos, Gengis Cã encomendou aos povos submetidos uma escrita para a sua língua, contratou letrados e difundiu idiomas espalhados pela Rota da Seda, facilitando a administração do maior império em terras contínuas que o mundo já viu, e não, como costumamos dizer, “semeando o terror”. Os mongóis nos ensinaram que governar, mais que impor a própria língua, é beneficiar-se da comunicação com os povos em contato: reunir para reinar.”
O trecho acima é parte de um artigo que escrevi em 2009 para o jornal O Tempo, quando vivia na cidade iorubá de Ilê-Ifé, na Nigéria. Esse país, como tantos na África, volta e meia se enreda no debate sobre políticas que equacionem a (antiga) diversidade linguística e a (recente) unidade nacional, resultado dos processos, ambos perversos, de colonização e descolonização. Ali são 500 línguas, três delas com dezenas de milhões de falantes, e lá está o inglês como uma estaca oficial cravada no coração nigeriano, defendida por alguns como “língua da união” entre etnias feitas rivais.
Naquele texto, usei o grande Cã como contraponto ao imperialismo linguístico das potências modernas. Em particular, questionei a necessidade de uma “defesa” do português na economia linguística mundial, seja como língua estrangeira ou como língua oficial nos países da África e no Timor. Como nos ensinou Walter Rodney em Como a Europa subdesenvolveu a África, difundir a própria língua e cultura foi uma prática usual do neocolonialismo europeu, e a razão de ser de instituições como a Aliança Francesa e a Real Academia Espanhola. Quando o principal centro de difusão do português passa a ser o Brasil, uma ex-colônia, a promoção ultramarina da língua acaba exalando um cheirinho de incoerência histórica.
Mais produtiva que esse interesse chauvinista em difundir a língua pátria, a questão que devia ser colocada é: e que língua é essa? Ou, mais precisamente, a quantas anda a política linguística brasileira dentro das fronteiras do país?

Uma das dificuldades de levarmos essa questão adiante é a ideia, muito comum nos meios intelectuais, de que o Brasil é país de uma língua só. Tanto em termos da “cepa” da língua (o português) quanto sua utilização “correta”, entendido isso como as regras contidas em um manual de instruções, previamente codificado e ensinado na escola: o “português padrão”. É incrível como tantos escritores, artistas, jornalistas e publicitários, gente que deveria ser mais bem-informadas e bem-informantes, pregam (e a mídia míope divulga) uma uniformidade linguística totalmente fictícia. Veja que esse não é um fenômeno recente, de impaciência com a “esquerda desvairada”. Desde os anos 1900, século sacrossanto do nosso fervor nacionalista, os doutos e letrados reclamam que o brasileiro “corrompe” a língua, o brasileiro “fala errado”, o brasileiro “não sabe português”, e que uma expressão como “as casa amarela” (uma construção de plural impecável, pergunte-me como) “dói no ouvido”. É muita asnice para mentes tão brilhantes. Esses sábios deviam saber que, por definição, todo adulto de mente sã sabe falar - e muito bem - a própria língua, e ponto final. Mas a culpa não é só deles, coitados.
A culpa não é só deles, pois, à dificuldade gigante de se desmascarar o mito da Língua Única do Brasil - um imaginário poderoso, antigo e com aval oficial -, soma-se o outro lado perverso da moeda, que é justamente a ciência que estuda a linguagem: a linguística. No afã de garantir o reconhecimento de nossa disciplina no panteão das ciências de verdade, e em nome da guerra contra os abusos normativos da gramática, nós, linguistas, nos agarramos a uma abordagem descritivista da língua. Resignamo-nos com a crença de que a ciência nada faz além de descrever (no máximo, explicar) o “fenômeno da língua”, sem dar muita bola para o quebra-pau que acontece entre os falantes, justamente por causa de suas línguas! Essa lavação científica de mãos só ajuda a aprofundar o poço brasileiro entre os arraigados valores socioculturais da língua única, e as nossas bem amparadas concepções acadêmicas sobre a língua multiforme, dinâmica, variável.

Ao contrário dos antropólogos, que bem ou mal acabam participando das políticas públicas envolvendo os grupos que estudam, tem muito linguista que assiste de camarote as decisões políticas que afetam a vida dos seus falantes. Falo de modo geral: parte da linguística brasileira, em especial os pesquisadores de línguas indígenas, aproxima-se dessa caracterização que fiz do trabalho do antropólogo. Mesmo nesses casos, impera a opção preferencial pelos pobres trabalhos descritivos. Isso afasta o linguista de uma conversa mais abrangente e produtiva com o resto dos mortais, e limita sua participação em políticas públicas envolvendo os encontros entre povos e línguas. Afasta o linguista da briga por mudar o (mau) uso, o status e as funções das línguas brasileiras e de suas variantes, situação que tanto sofrimento causa a tanta gente.
Ao lado do “português correto”, a história de que o português é língua mui natural de todos nós desde a colonização, é um senhor mito. O uso exclusivo do português foi baixado por decreto no século 18, por Marquês de Pombal, contra uma realidade de várias línguas - em especial a “língua geral”, de base tupi -, faladas e transfaladas por índios, escravos, estrangeiros e pelos próprios portugueses e seus milhões de rebentos caboclinhos. O Brasil sempre foi e continua sendo um país plurilíngue (Portugal também é, aliás), com situações não raro conflituosas de contato linguístico. Isso precisa ser reconhecido, ser encarado como um alvo de políticas públicas e merecer a participação mais efetiva dos linguistas nos esforços de pesquisa e elaboração de políticas e planejamento linguísticos que desemudeçam os brasileiros.    


Voltando à Nigéria e seu inglês oficial, o engraçado (se há graça nisso), é que a maioria da população não fala inglês, ou, melhor dizendo, essa maioria pouco letrada fala (há séculos) um outro-inglês nativo, que causa calafrios à classe culta daquele país. Notou alguma semelhança com o Brasil? Pois é.


Publicado no jornal O Cometa Itabirano, maio/2012

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Gente bonita: a língua culta do bairro nobre


Pedro Perini-Santos e Beto Vianna

Reclamar das limitações impostas pelo policiamento linguístico virou o esporte preferido de alguns fazedores de opinião congenitamente mal-humorados. Como não queremos cercear a liberdade de ninguém de ofender os demais, vamos tratar de um assunto bem mais afirmativo, que é a linguagem do apreço, do enaltecimento.
As expressões que compõe o título deste artigo não foram expurgadas pelo politicamente correto. São termos corriqueiros que aparecem em anúncios publicitários, em matérias de divulgação de eventos e até no noticiário. Chamadas como “Megabalada na boate O Alpendre: só vem gente bonita” são ilustradas por fotos de pessoas jovens, brancas, bem-tratadas e com cabelos lisos. O recado é claro: bonito é quem é jovem, forte, branco e rico.
Em estilo semelhante, as imobiliárias e as colunas sociais categorizam os bairros mais ricos da zona sul da cidade como “bairros nobres”, ou seja, há bairros que acolhem moradores que são vistos e tidos como superiores aos demais habitantes da capital, pois, se há pessoas nobres, os demais, por extensão, são plebeus, certo? Compare esses termos com aquele outro, tão usado por nossos intelectuais sempre alertas ao bom uso da língua: “norma culta”. E quem não pratica a norma culta, é, por extensão, o quê?
Não é necessário haver controle na entrada de eventos de gente bonita ou no acesso aos bairros nobres, selecionando quem pode e quem não pode participar dos ambientes especiais. A vivência diária o faz. Por exemplo, para que negras e negros sejam plenamente aceitos, esses têm que ser ainda mais charmosos e ricos que a média dos usuários habituais dos setores vips da sociedade. Devem ser motivos de um sonoro “uau, que corpo!”, sendo essa frase a expressão prosódica do desejo por contato erótico a ser relatado orgulhosa e sutilmente aos amigos e amigas, e acompanhado por generosas doses de um especial 12 anos qualquer.
Quem está por cima acha ótimo continuar nesse lugar. Palavras como "esnobe", supostamente críticas daqueles que têm ou mostram ter bala na agulha, têm origem na falta de paciência com a mobilidade social. Dizem as más línguas que vem da  abreviação inglesa s.nob (sem nobreza), título carimbado nos alunos de origem plebeia que receberam a graça de frequentar as sangueazuladas escolas britânicas.
O mesmo vale para o convívio nos bairros da elite, outra expressãozinha danada de complicada. Nesse caso, a linha de corte é o rendimento e a aparente sofisticação comportamental. Ali os restaurantes têm nomes italianos e franceses, com cardápios redigidos nessas línguas, generosamente evitando que consumidores plebeus, incapazes de pronunciar corretamente o costumaz pedido de um Pinot Noir, 95, com bouquet épicée, adentrem ao recinto e paguem mico (para os outros).
É ótimo ter liberdade de escolha no uso da língua. Mas não custa nada abandonarmos as escolhas que ferem as outras pessoas. Isso, sim, é falar bonito.

Publicado em O Tempo, 12/05/12

sexta-feira, 16 de março de 2012

O jardim das delícias antropofágicas

A linguagem e a biologia da Quarta-feira de Cinzas

Beto Vianna

O Éden

Tem gente de mente colonizada, como eu, que acha Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel os melhores artistas visuais do planeta. Há mais de 500 anos, Bosch pintou um conjunto de três telas - um “tríptico”, na gíria especializada - de nome “O jardim das delícias terrenas”.  Como todos os trípticos, esse funciona assim: as telas laterais são abas que se fecham sobre a pintura central. Do lado de fora (nas costas das abas), Bosch pintou o mundo no terceiro dia da criação, com a vida vegetal desabrochando antes do advento da humanidade. Abertas as abas, saltam as delícias do jardim terreno de Bosch.
A tela da esquerda traz Deus, em pessoa, abençoando Eva antes de entregá-la a Adão. É uma cena de casamento, o casamento original, em um cenário de natureza intacta, a não ser por uma ou outra arquitetura biotecnológica, bem ao gosto de Bosch, e uma zoobotânica tão plausível quanto fantástica. Na tela da direita, pinta a confusão que resultou desse bendito casamento: as atividades (os prazeres e os negócios) de uma humanidade crescida e multiplicada tornam-se provações do inferno, um cenário gótico de Stephen King onde, da natureza original, só restam os corpos em agonia. Personagens vivos confundem-se com elementos de cena e, no fundo do palco, a cidade arde em chamas.
O painel central, maior, é o mais importante, posto que é central e maior. Essa tela deixou cinco séculos de críticos e historiadores de arte confusos, contorcendo-se para tirar significado de tanta perversão inocente, tanta beleza maldita, tanto pecado angelical. Num cenário psicodélico que mescla natureza e cultura (e interagindo com essa natureza e cultura), gente pelada de todas as cores entrega-se a toda classe de artes, especialmente a do amor. Aí, no desenho central, Bosch retratou o verdadeiro jardim humano: nem candidamente paradisíaco, como a cena da esquerda, nem lamentavelmente infernal, como a tela direitista. A imagem do meio é a mensagem.

A carne

Em 1559, o flamengo Pieter Bruegel pintou “A luta entre o Carnaval e a Quaresma”. Bruegel tem uma qualidade herdada de Bosch: quanto mais suas figuras retratam uma realidade corriqueira, mais o sonho brota da tela, mais afundamos em uma viagem alucinatória. Como em outros quadros seus, Bruegel pinta cenas do cotidiano da cidade, que, nesse caso, nos ajudam a desvendar o jardim central de Bosch. O Ocidente sempre foi berço de sonolentas dicotomias (a começar por autointitular-se Ocidente), e Bruegel, que não é bobo nem nada, pinta e borda duplicidades em seu quadro. A obra é uma explosão de dobros, de opostos, de espelhos. Pelo lado do Carnaval, ali estão os elementos mundanos do bêbado, do bar, da gula, da música, da máscara, da esbórnia e da carne. Da direita, vêm os oponentes (também mundanos, é claro): o clérigo, a igreja, a frugalidade, a devoção, a batina, a hóstia e o peixe, cerrando fileiras com a Quaresma. E os opostos, sendo opostos, não se repelem. Antes se entrelaçam e se confundem, como numa dessas cenas de batalha antiga, dirigidas por Mel Gibson.
Não posso deixar de pensar que o atual Carnaval de Belo Horizonte está repleto dos elementos contraditórios de um Carnaval que se preze, ainda que não tão explícitos quanto na andrógina folia de Bruegel. Alegre, popular, musicalmente cativante, a redescoberta festa de rua belorizontina está recheada da tradição carnavalesca de misturar, nas letras das marchinhas e nos gritos dos blocos, o louvor à frouxidão dos costumes e a denúncia à imoralidade política. Movimentos que surgiram da contestação política, como o Fora Lacerda e o Praia da Estação (este, já plenamente carnavalizado desde o início), deglutiram e foram deglutidos na apoteose do Carnaval da cidade, integrando-se ao delírio das máscaras e dos cortejos. Um mix de defesa política do espaço público e da diversidade comportamental que, por outro lado, não consegue se livrar de velhos ingredientes conservadores da classe média mineira.

O carrus navalis

No calor do Carnaval deste ano, li um artigo dizendo que a palavra “carnaval” passou a “significar o contrário do que significa”. Sugere que a etimologia do termo seria carnen laxare (sic), “deixar a carne”, pois, para o autor, o Carnaval está ligado ao ato de “abster-se de carne”. Bem o contrário, portanto, do desbunde que (segundo o autor) se vê no “carnaval de hoje”. Duvido que as palavras tenham um significado gravado a ferro e fogo em alguma pedra imemorial. E se podemos escolher, prefiro uma famosa etimologia popular, carne vale, que é o latim para “adeus à carne”. Muito apropriado, pois só bem nos despedimos de algo devorando fastidiosamente esse algo (a razão da despedida é celebrar a presença). Laxante, se houver algum, é a Quaresma, não o Carnaval.
A sacação etimológica de que mais gosto é carrus navalis. É possível que os gregos tenham sido os primeiros a se carnavalizar, com suas orgias bacantes, e tudo mais. Mas foram os romanos tardios que primeiro caíram, de fato, na folia. Essa plurirraça miscigenada de várias europas, ásias e áfricas é precursora dos latinos do Novo Mundo - nós -, como nos ensina Darcy Ribeiro. Precursores nossos na tristeza e na alegria, na paixão e na farra. Carrus navalis era o barco da deusa Ísis, uma carroça fantasiada de embarcação (ou seja, um carro alegórico), movida a álcool, amor e cantoria pelas ruas da antiga Roma. O entrudo tinha caráter religioso, a festa era uma forma de adoração, e atrás do Barco de Ísis só não ia quem já morrera.
Um devoto seguidor de Ísis foi o jovem imperador romano Calígula, que segundo o historiador Suetônio, era um tirano sanguinário e incestuoso. Mas Suetônio é o equivalente romano da imprensa golpista. Para o bem ou para o mal, Calígula entregava-se de alma e corpo às contradições de sua deusa africana, pairando entre o mundano e o divino. O imperador se fantasiava, segundo a ocasião, de suma autoridade ou rebelde anárquico, debochando da estrutura de poder e aliando-se ao povo contra a elite, em uma época em que Roma ainda não contava com o recurso populista do circo máximo. O filme “Calígula”, repleto de elementos carnais explícitos, soa mais boschiano que o relato moralista de Suetônio. Como na cena em que o imperador manda construir um imenso carrus navalis (a religião), onde as esposas dos senadores (a política) são oferecidas como prostitutas (o sexo). Puro Carnaval.

Quarta-feira

Vou sugerir, não como um esforço de interpretação, mas um truque pra me ajudar a dizer o que quero dizer, que o que une a ambígua tela central do jardim de Bosch, a mescla de opostos do quadro de Bruegel e a devoção mundana à deusa Ísis não é um tema específico, mas um dia específico, que se repete ano após ano em variadas (pois lunáticas) datas. Um dia que se repete desde que uma humanidade fundamentalmente erotizada quis, além disso (e, não, ao invés disso) ser pia: a Quarta-feira de Cinzas.
O processo civilizatório foi um jogo de opostos (irreconciliáveis, mas inextrincáveis) a nos condenar eternamente. Se isso é verdade na Europa de Bosch e Bruegel, mais ainda no Novo Mundo, em que o Carnaval transladado ganha a participação cada vez mais decisiva da indiada e do criouléu mal-saídos do cativeiro, e a folia sempre motivou a desconfiança e a tentativa de manipulação dos festejos pelos donos da terra. Por outro lado, o pendor religioso do populacho latino-americano tem sua melhor performance na Páscoa, quando as missas e procissões reúnem essa mesma massa pobre e marginal (paixão e movimento são uma coisa só). Se a Quarta-feira de Cinzas dá início à observância devocional, também é, para muitos, dia de Carnaval. Talvez o mais importante, por ser o último. A despedida, o carne vale.
Folia e devoção sobre-humana são protestos momentâneos diante de uma realidade opressora, desumanizadora. E a Quarta-feira de Cinzas é o momento desses momentos. É, mais que isso, a data (móvel, vá lá) oficial de se viver esses dois momentos de mãos dadas, sem muita vergonha, ou, pelo menos, atrás da oportuna máscara ou da religiosa abstinência (não comer o que usualmente se come é um jeito de se fantasiar). Na Quarta-feira, e só na Quarta-feira, o amor carnal e o amor devoto têm a mesma motivação política. Encontram-se, beijam-se. É a tela central do jardim antropofágico de Bosch, seja na Belo Horizonte de hoje ou na Roma eterna. 

Publicado no jornal O Cometa Itabirano, março/2012