Política
e preconceito no país do português
de Beto Vianna
“Há 800 anos, Gengis Cã encomendou aos
povos submetidos uma escrita para a sua língua, contratou letrados e difundiu
idiomas espalhados pela Rota da Seda, facilitando a administração do maior
império em terras contínuas que o mundo já viu, e não, como costumamos dizer,
“semeando o terror”. Os mongóis nos ensinaram que governar, mais que impor a
própria língua, é beneficiar-se da comunicação com os povos em contato: reunir
para reinar.”
O trecho acima é parte de um artigo que
escrevi em 2009 para o jornal O Tempo,
quando vivia na cidade iorubá de Ilê-Ifé, na Nigéria. Esse país, como tantos na
África, volta e meia se enreda no debate sobre políticas que equacionem a
(antiga) diversidade linguística e a (recente) unidade nacional, resultado dos
processos, ambos perversos, de colonização e descolonização. Ali são 500
línguas, três delas com dezenas de milhões de falantes, e lá está o inglês como
uma estaca oficial cravada no coração nigeriano, defendida por alguns como
“língua da união” entre etnias feitas rivais.
Naquele texto, usei o grande Cã como
contraponto ao imperialismo linguístico das potências modernas. Em particular,
questionei a necessidade de uma “defesa” do português na economia linguística
mundial, seja como língua estrangeira ou como língua oficial nos países da
África e no Timor. Como nos ensinou Walter Rodney em Como a Europa subdesenvolveu a África, difundir a própria língua e
cultura foi uma prática usual do neocolonialismo europeu, e a razão de ser de
instituições como a Aliança Francesa e a Real Academia Espanhola. Quando o
principal centro de difusão do português passa a ser o Brasil, uma ex-colônia,
a promoção ultramarina da língua acaba exalando um cheirinho de incoerência
histórica.
Mais produtiva que esse interesse chauvinista
em difundir a língua pátria, a questão que devia ser colocada é: e que língua é
essa? Ou, mais precisamente, a quantas anda a política linguística brasileira dentro das fronteiras do país?
Uma das dificuldades de levarmos essa
questão adiante é a ideia, muito comum nos meios intelectuais, de que o Brasil
é país de uma língua só. Tanto em termos da “cepa” da língua (o português)
quanto sua utilização “correta”, entendido isso como as regras contidas em um manual
de instruções, previamente codificado e ensinado na escola: o “português
padrão”. É incrível como tantos escritores, artistas, jornalistas e publicitários,
gente que deveria ser mais bem-informadas e bem-informantes, pregam (e a mídia míope
divulga) uma uniformidade linguística totalmente fictícia. Veja que esse não é
um fenômeno recente, de impaciência com a “esquerda desvairada”. Desde os anos
1900, século sacrossanto do nosso fervor nacionalista, os doutos e letrados reclamam
que o brasileiro “corrompe” a língua, o brasileiro “fala errado”, o brasileiro
“não sabe português”, e que uma expressão como “as casa amarela” (uma
construção de plural impecável, pergunte-me como) “dói no ouvido”. É muita asnice
para mentes tão brilhantes. Esses sábios deviam saber que, por definição, todo
adulto de mente sã sabe falar - e muito bem - a própria língua, e ponto final. Mas
a culpa não é só deles, coitados.
A culpa não é só deles, pois, à
dificuldade gigante de se desmascarar o mito da Língua Única do Brasil - um
imaginário poderoso, antigo e com aval oficial -, soma-se o outro lado perverso
da moeda, que é justamente a ciência que estuda a linguagem: a linguística. No afã
de garantir o reconhecimento de nossa disciplina no panteão das ciências de
verdade, e em nome da guerra contra os abusos normativos da gramática, nós, linguistas,
nos agarramos a uma abordagem descritivista da língua. Resignamo-nos com a
crença de que a ciência nada faz além de descrever (no máximo, explicar) o “fenômeno
da língua”, sem dar muita bola para o quebra-pau que acontece entre os
falantes, justamente por causa de suas línguas! Essa lavação científica de mãos
só ajuda a aprofundar o poço brasileiro entre os arraigados valores
socioculturais da língua única, e as nossas bem amparadas concepções acadêmicas
sobre a língua multiforme, dinâmica, variável.
Ao contrário dos antropólogos, que bem
ou mal acabam participando das políticas públicas envolvendo os grupos que
estudam, tem muito linguista que assiste de camarote as decisões políticas que
afetam a vida dos seus falantes. Falo de modo geral: parte da linguística
brasileira, em especial os pesquisadores de línguas indígenas, aproxima-se
dessa caracterização que fiz do trabalho do antropólogo. Mesmo nesses casos, impera
a opção preferencial pelos pobres trabalhos descritivos. Isso afasta o linguista
de uma conversa mais abrangente e produtiva com o resto dos mortais, e limita sua
participação em políticas públicas envolvendo os encontros entre povos e
línguas. Afasta o linguista da briga por mudar o (mau) uso, o status e as funções das línguas
brasileiras e de suas variantes, situação que tanto sofrimento causa a tanta
gente.
Ao lado do “português correto”, a
história de que o português é língua mui natural de todos nós desde a
colonização, é um senhor mito. O uso exclusivo do português foi baixado por
decreto no século 18, por Marquês de Pombal, contra uma realidade de várias
línguas - em especial a “língua geral”, de base tupi -, faladas e transfaladas
por índios, escravos, estrangeiros e pelos próprios portugueses e seus milhões
de rebentos caboclinhos. O Brasil sempre foi e continua sendo um país
plurilíngue (Portugal também é, aliás), com situações não raro conflituosas de
contato linguístico. Isso precisa ser reconhecido, ser encarado como um alvo de
políticas públicas e merecer a participação mais efetiva dos linguistas nos
esforços de pesquisa e elaboração de políticas e planejamento linguísticos que
desemudeçam os brasileiros.
Voltando à Nigéria e seu inglês oficial,
o engraçado (se há graça nisso), é que a maioria da população não fala inglês,
ou, melhor dizendo, essa maioria pouco letrada fala (há séculos) um outro-inglês
nativo, que causa calafrios à classe culta daquele país. Notou alguma
semelhança com o Brasil? Pois é.
Publicado no jornal O Cometa Itabirano, maio/2012
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