sábado, 13 de fevereiro de 2010

Emoções-visões: a árvore e o controle


Em sua “Gramática Gerativa dos Urubu-Kaapor” (KAKUMASU, 1976), sob notável influência de Aspects, de Chomsky (1965), o lingüista canadense James Kakumasu ressente-se do não-conformismo (para o gosto da sintaxe transformacional) da língua Kaapor: 

"Parece aconselhável não estabelecer uma estrutura constituinte FN FV (frase nominal) (frase verbal) no caso desta língua conforme a primeira regra de estrutura frasal (EF). Seria preciso uma regra de recomposicão subseqüente para formar os constituintes V (FN). Este passo, por sua vez, iria exigir uma transformação obrigatória para colocar a FN (i.e., objeto) na ordem certa. É excusado fazer isso se a primeira regra EF é S → (FN) (FN) V. Assim, as regras EF para a língua Urubu seguem os contornos propostos pelos gerativistas que admitem a divergência de mais de dois elementos do S.” (KAKUMASU, 1976, p. 171).

Kakumasu nota porém, com alívio, que há gerativistas que “admitem” um estrutura tripartida, “salvando” assim a língua Kaapor dentro da teoria. Um desconforto semelhante ocorre em relação à tipologia sintática dessa língua com sua estrutura preferencial OSV. Segundo Kakumasu, o grande tipologista Greenberg propõe três tipos “dominantes”: VSO (tipo I, p. ex., o árabe); SVO (tipo II, como o português); e o tipo III, SOV, como o japonês. Antes do Kaapor abalar a tipologia de Greenberg, Kakumasu lembra-nos que há “uma interpretação alternativa”, em que o “que importa mais saber é se V é inicial, medial ou final do que se a ordem dos elementos restantes é SO ou OS” (KAKUMASU, 1976, p. 171): Kaapor é então de tipo III, e a teoria foi mais uma vez salva pelo gongo.

Citamos aqui os comentários de Kakumasu sobre os aspectos sintáticos dessa língua Tupi, não para mostrar que há uma dissociação fundamental entre a “gramática gerativa” e a “realidade da língua” e, também, não para discutir dada teoria lingüística, mas para tomar emprestadas duas constatações do autor para os nossos propósitos neste artigo: a bipartição hierárquica da árvore chomskyana versus outras possibilidade de ruptura (ou de estratificação, ou de não-hierarquia) e a importância secundária de se decidir pela ordem S-O (sujeito-objeto) ou O-S (objeto-sujeito), desde que mantido um sujeito e um objeto nitidamente separados e respeitado o pivô frasal em V (a partir do qual é operada, digamos, a “sujeição do sujeito” e a “objetivação do objeto”).

O que é, ou o que se torna, o sujeito de uma investigação? Tanto no estudo de campo quanto no laboratório, convencionou-se, mais propriamente do que se imagina, chamar sujeito aquele que responde à situação experimental ou a um determinado método observacional. Em ambos os casos, o sucesso de uma investigação depende das restrições impostas pela teoria ou pelo método, e o sujeito deve estar, necessariamente, sujeito (sujeitado, subjugado) a tais restrições. Não é cientificamente correto observar “qualquer coisa” (qualquer comportamento, qualquer mudança de estado, ou mesmo qualquer estado), mas apenas aqueles fenômenos previamente admitidos como fenômenos no desenho do experimento ou no modelo de observação. Há, de fato, uma franca admiração na literatura científica pelo experimento “engenhoso”, querendo isso dizer que o investigador está em uma posição excepcional de controle da situação experimental, e, quando há a interrogação do sujeito (em experimentos psicológicos, lingüísticos, antropológicos, por exemplo), que este está satisfatoriamente “sujeitado”: só há um estreito caminho por onde passar suas respostas, conduzidas para se conformar à pergunta do investigador, e nisso reside a engenhosidade do experimento. É talvez antes a teoria que prova o sujeito do que o contrário, pois é o sujeito que é posto à prova para confirmar (ou refutar) a teoria.

Trecho de: VIANNA, SÁNCHEZ-CRIADO e GÓMEZ-SORIANO, 2008. Das emoções-visões aos afetos-versões: uma crítica do discurso psicológico em Vinciane Despret. Artigo completo aqui.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Máquinas e seres vivos

Reuben Lucious Goldberg - Rube Goldberg - nasceu em São Francisco, EUA, em 1883, apenas um ano após a morte de Darwin. Seu pai queria que ele cursasse a faculdade de engenharia, e foi o que Rube fez. Graduou-se em Berkeley e trabalhou como engenheiro do Departamento de Água e Esgoto da Cidade de São Francisco, de onde saiu pouco tempo depois para fazer o que realmente gostava, desenhar. Rube ficou conhecido nos anos 30 principalmente pelas “Invenções do Professor Lucifer Butts” (Oyama, 2000b), engenhocas idealizadas para realizar as tarefas mais corriqueiras do modo mais complicado possível.

A Figura acima apresenta a máquina “Para não esquecer de postar a carta da sua mulher”. Quando você passa em frente ao sapateiro, o gancho (A) agarra a bota suspensa (B) fazendo-a chutar a bola (C), que é arremessada por sobre as traves (D). A bola cai na cesta (E), que, ao abaixar, puxa uma corda (F) em um sistema de roldanas, inclinando o regador (G) que molha a aba do casaco (H). A água faz a aba encolher, puxando a corda (I) que abre a porta da gaiola (J), deixando o passarinho (K) sair e andar pelo puleiro (L) até pegar a minhoca (M), que está presa em uma linha (N). Isso faz desenrolar uma tela (O) em que está escrito: “coloque a carta na caixa de correio, seu distraído!”.

As máquinas de Rube Goldberg podem soar como uma vingança kafkiana do cartunista contra o engenheiro, e, de fato, se há alguma mensagem interessante na obra de Rube - além do efeito cômico plenamente justificador de seu trabalho - iremos encontrá-la na crítica à objetividade duvidosa da tecnologia em meio às irredutíveis contingências das atividades humanas. Ao menos na cultura norte-americana, “máquina de Rube Goldberg” virou sinônimo de qualquer solução demasiadamente complexa para problemas comparativamente simples, como “reforma fiscal Rube Goldberg” ou “estratégia eleitoral Rube Goldberg”. Engenhosidade desnecessária, muito barulho por quase nada.

Aqui nos interessa o arranjo a um só tempo mecanicista e contingente dessas máquinas. Elas são compostas por engrenagens simples, como eixos, roldanas e alavancas, que acionam e são acionadas pelos objetos mais prosaicos, como brinquedos, peças de vestuário e utensílios domésticos. E há as criaturas vivas. O comportamento dos organismos equipara-se, no funcionamento total do sistema, aos movimentos predizíveis das roldanas e à ação da gravidade, uma caricatura do telos, do determinismo e do reducionismo: o absurdo de esperar que a engrenagem pássaro irá inevitavelmente comer o mecanismo minhoca. Ao nos fazerem rir, as máquinas Rube Goldberg evidenciam questões que sempre estiveram no cerne das indagações sobre a fisiologia e o desenvolvimento dos organismos, e, nos últimos 200 anos, também sobre sua evolução: as restrições funcionais impostas por uma determinada estrutura (a forma por trás da função); o sentido de uma estrutura particular (a função por trás da forma); a natureza - determinística ou indeterminada - da origem e desenvolvimento dessa articulação entre estrutura e função (“acaso e necessidade”, como no título do livro de Jacques Monod, 1971); e, finalmente, o nível adequado de explicação desse processo do vivo (um de seus elementos constitutivos? O organismo inteiro? As demandas de um ambiente “lá fora”?).
  
Trecho de “Nós primatas em linguagem” (Vianna, 2006, p. 119-121). Trabalho completo aqui.