terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Máquinas e seres vivos

Reuben Lucious Goldberg - Rube Goldberg - nasceu em São Francisco, EUA, em 1883, apenas um ano após a morte de Darwin. Seu pai queria que ele cursasse a faculdade de engenharia, e foi o que Rube fez. Graduou-se em Berkeley e trabalhou como engenheiro do Departamento de Água e Esgoto da Cidade de São Francisco, de onde saiu pouco tempo depois para fazer o que realmente gostava, desenhar. Rube ficou conhecido nos anos 30 principalmente pelas “Invenções do Professor Lucifer Butts” (Oyama, 2000b), engenhocas idealizadas para realizar as tarefas mais corriqueiras do modo mais complicado possível.

A Figura acima apresenta a máquina “Para não esquecer de postar a carta da sua mulher”. Quando você passa em frente ao sapateiro, o gancho (A) agarra a bota suspensa (B) fazendo-a chutar a bola (C), que é arremessada por sobre as traves (D). A bola cai na cesta (E), que, ao abaixar, puxa uma corda (F) em um sistema de roldanas, inclinando o regador (G) que molha a aba do casaco (H). A água faz a aba encolher, puxando a corda (I) que abre a porta da gaiola (J), deixando o passarinho (K) sair e andar pelo puleiro (L) até pegar a minhoca (M), que está presa em uma linha (N). Isso faz desenrolar uma tela (O) em que está escrito: “coloque a carta na caixa de correio, seu distraído!”.

As máquinas de Rube Goldberg podem soar como uma vingança kafkiana do cartunista contra o engenheiro, e, de fato, se há alguma mensagem interessante na obra de Rube - além do efeito cômico plenamente justificador de seu trabalho - iremos encontrá-la na crítica à objetividade duvidosa da tecnologia em meio às irredutíveis contingências das atividades humanas. Ao menos na cultura norte-americana, “máquina de Rube Goldberg” virou sinônimo de qualquer solução demasiadamente complexa para problemas comparativamente simples, como “reforma fiscal Rube Goldberg” ou “estratégia eleitoral Rube Goldberg”. Engenhosidade desnecessária, muito barulho por quase nada.

Aqui nos interessa o arranjo a um só tempo mecanicista e contingente dessas máquinas. Elas são compostas por engrenagens simples, como eixos, roldanas e alavancas, que acionam e são acionadas pelos objetos mais prosaicos, como brinquedos, peças de vestuário e utensílios domésticos. E há as criaturas vivas. O comportamento dos organismos equipara-se, no funcionamento total do sistema, aos movimentos predizíveis das roldanas e à ação da gravidade, uma caricatura do telos, do determinismo e do reducionismo: o absurdo de esperar que a engrenagem pássaro irá inevitavelmente comer o mecanismo minhoca. Ao nos fazerem rir, as máquinas Rube Goldberg evidenciam questões que sempre estiveram no cerne das indagações sobre a fisiologia e o desenvolvimento dos organismos, e, nos últimos 200 anos, também sobre sua evolução: as restrições funcionais impostas por uma determinada estrutura (a forma por trás da função); o sentido de uma estrutura particular (a função por trás da forma); a natureza - determinística ou indeterminada - da origem e desenvolvimento dessa articulação entre estrutura e função (“acaso e necessidade”, como no título do livro de Jacques Monod, 1971); e, finalmente, o nível adequado de explicação desse processo do vivo (um de seus elementos constitutivos? O organismo inteiro? As demandas de um ambiente “lá fora”?).
  
Trecho de “Nós primatas em linguagem” (Vianna, 2006, p. 119-121). Trabalho completo aqui.

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