quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Nós e o espaço relacional (biológico) da linguagem


Costumamos considerar o comportamento algo facilmente mutável, ou, pelo menos, mais maleável do que a “constituição biológica”. Se levarmos a sério o caminho explicativo das abordagens sistêmicas, no entanto, a situação é bem outra. Modos de vida, ou seja, as relações estabelecidas com o meio, são modos específicos de realizar a organização - seja humana, símia ou mamífera, no nosso caso -  e necessariamente conservadores, pois implicam a própria manutenção de nossa condição de ser-e-estar-vivos (durante a ontogenia) e a continuidade da linhagem (no fenômeno da reprodução). Mesmo no estabelecimento de uma nova linhagem, o organismo conserva parte do modo de vida, pois realiza sua ontogenia inicial no contexto do modo de vida parental. Nossa constiuição orgânica, ao contrário, pode variar imensamente: pode variar tanto quanto permita a realização do nosso viver. Se prestarmos atenção a um grupo qualquer de seres humanos, nos impressionamos com a diversidade de anatomias, estaturas, fisionomias e fisiologias, conformações físicas as mais variadas que, no entanto, prestam-se todas a um modo de vida comum. Mesmo entre as mais variadas culturas humanas é conservado um modo de vida que tem a ver com a história de nossa linhagem, e que nos diferencia de outros organismos. Não é isso que distingüimos quando dizemos que só o humano “tem linguagem”? Ou “tem cultura”? Ou uma existência espiritual ou simbólica? Com os organismos não-humanos ocorre o mesmo. A diversidade de formas da natureza sempre impressionou Darwin, e, em A origem, ele diz que uma compreensão abrangente da evolução passa por descobrirmos as “Leis da Variação” (DARWIN, 2002, p. 130-156).

Ao contemplar outra organização que também faz parte de nós, humanos, como a de grandes símios, identificamos rapidamente as enormes diferenças nos atributos físicos, ou, pelo menos entre “nós” e “eles” (nem todos sabemos distingüir um orangotango de um gorila, apesar de sermos mais aparentados ao gorila que o organgotango). Se atentarmos para os modos de vida que foram conservados em nossa antiga linhagem de grandes símios (que remonta a mais de 10 milhões de anos) nos impressionamos com o fato de seres tão diferentes realizarem coisas tão parecidas: a criação amorosa dos filhotes, a intricada rede social, o manuseio de alimentos e de outros objetos, a confecção (manual) deinstrumentos e muitos outros modos de conhecer, ou seja, de operar em interação com os elementos do entorno que nos permitem realizar nossa organização de grandes símios.

Como um tipo particular do modo de vida - a relação organismo-meio - temos a relação estabelecida entre dois ou mais organismos, a co-ontogenia (VIANNA, 2006, p. 308-313). Tal como em relação ao entorno, dois organismos em acoplamento estrutural irão mudar suas estruturas de modo correspondente, na interação. Se essa história de relações durar o suficiente, se a interação for recorrente e houver uma recursividade nessa interação (ou seja, se as mudanças em cada um dos organismos em interação servir para a mudanças subseqüentes nos dois sistemas) temos uma coordenação de ações ente os organismos, que é o estabelecimento de um domínio lingüístico, base da formação de um sistema social. Assim, se atentarmos, não para o “conteúdo” ou a “forma” dessas relações, para os elementos que são utilizados no proceso de interação e a maneira como são utilizados, mas prestarmos atenção na recursividade do processo interacional co-ontogênico, estaremos decrevendo os fundamentos biológicos do fenômeno da linguagem. 

O principal estranhamento entre minha própria abordagem e a da Biologia do Conhecer, é que, nesse sistema explicativo, é preciso não apenas que haja coordenações de ações (o domínio lingüístico que descrevi acima), mas coordenações de coordenações de ações, ou seja, que o próprio domínio consesual do encontro recorrente (de gestos, posturas, sons entre outros) seja utilizado, recursivamente, no processo de coordenar ações dos organismos. Para Maturana, é na linguagem (ou “linguajar”; MATURANA, 1997b, p. 175) que surge o humano, e, como modo de conservar sua organização, o humano vive nesse “fluir de interações recorrentes” (MATURNA, 1997b, p. 168). Concordo com Maturana, e concordo principalmente sobre o que ele diz sobre “denotação” (MATURANA, 1997, p. 150):

[Denotação] não é uma operação primitiva. Ela requer concordância - consenso - para a especificação tanto do denotante quanto do denotado. Se a denotação, portanto, não é primitiva, não pode ser tampouco uma operação lingüística primitiva.

É por concordar com a Biologia do Conhecer sobre o que é uma operação primitiva - o domínio consensual - que considero a realização do domínio consensual humano na linguagem um caso particular do espaço relacional co-ontogênico em que vive todo e qualquer organismo. Tudo aquilo que argumentei sobre a cognição e a evolução - ou seja, que apontar para informações prévias no mundo ou na mente não explica o fenômeno do conhecer, e apontar para informações prévias no ambiente ou no genoma não explica o fenômeno da deriva evolutiva -, serve, igualmente, para a linguagem. 



Darwin, Charles. A origem das espécies. Tradução de Eugênio Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002
Maturana, Humberto. Biologia da linguagem: a epistemologia da realidade. Tradução de Cristina Magro. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (Orgs.). A ontologia da realidade/Humberto Maturana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. p. 123-166.
Maturana, Humberto. Ontologia do conversar. Tradução de Cristina Magro e Nelson Vaz. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (Orgs.).  A ontologia da realidade/Humberto Maturana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997b. p. 167-181.
Vianna, Beto. Nós primatas em linguagem: relações lingüísticas como um processo biológico. Belo Horizonte, 2006. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais.