terça-feira, 25 de maio de 2010

Ponto Pacífico na linguagem


Uma antropóloga do século XXI, falante nativa do inglês, desembarca em uma ilha do Pacífico com o intuito de estudar os costumes dali e pouquíssimo conhecimento da língua local. Talvez ela tenha uma vaga idéia da família lingüística a que aquele falar pertence, talvez ela tenha uma vaga idéia do tipo de vida que os ilhéus levam. Se a antropóloga assumir que quaisquer tentativas de interação são inúteis, pela dessemelhança dos hábitos e da língua, a pesquisa já nasceu condenada, é claro, e é portanto, preciso achar meios de interagir. Mas a antropóloga, que, embora “verde” no trabalho de campo, tem um bom trânsito na literatura em etnografia, não duvida que sua própria cultura é diferente da de seus sujeitos, de que sua própria língua é diferente da deles. O que torna a negociação difícil, trabalhosa, no entanto, não são essas diferenças por si mesmas, mas o processo de inter-relação, em que, entre uma floresta de diferenças óbvias, faz-se necessário encontrar caminhos, clareiras, atalhos, esses bem mais sutis. É necessário um “esforço interpretativo”, não apenas na elaboração da descrição que a antropóloga irá fazer de seus sujeitos mas no próprio momento da interação.

Após uns dois anos no campo, ao voltar para sua terra e para a vida acadêmica com os dados debaixo do braço, a antropóloga vai reencontrar um mundo de relações totalmente distinto. Vai comunicar sua pesquisa em uma linguagem bem sua conhecida, não só o inglês mas todo um modo de interagir próprio da academia. Nesse outro mundo não há menos necessidade de negociação diária que no primeiro, mas a diferença é a longa história de relações vivida pela antropóloga em seu “nicho cultural”, qualitativamente diferente daquelas poucas centenas de dias no meio de perfeitos estranhos (não estou querendo relativizar muito minha própria história inventada, mas é claro que percursos são percursos, não importa se longos ou breves: uma atitude emocional mais positiva da pesquisadora em relação aos ilhéus que em relação a seus pares sempre pode reverter a facilidade com que ela se relaciona em um e outro espaço).

A pergunta simples, cuja resposta é bastante consensual entre os cientistas humanos é: onde está a diferença entre aqueles dois mundos? Certamente não na língua ilhéu, por maior que seja o número de seus fonemas “exóticos”, de cliques e glides nasais. Também não poderia estar na cultura da ilha, ainda que seus habitantes comam suas próprias crianças ou experienciem um relativismo cósmico, para nos lembrarmos dos Hopi de Benjamin Lee Whorf (1998). Tampouco a diferença está nas peculiaridades da língua inglesa ou da cultura ocidental, e, já me adiantando a uma terceira hipótese, também não iremos encontrar a resposta na diferença entre esses dois modos de vida particulares (chás às 5 horas versus reuniões coletivas de ingestão de bebidas mágicas, por exemplo). Uma boa evidência de que nenhuma dessas três alternativas explica a desenvoltura desigual da antropóloga nos dois mundos é que os habitantes da ilha também tendem a sentir-se mais à vontade às voltas consigo mesmos. Para usar um jargão acadêmico contemporâneo, conforto e desconforto são estados emocionais situados, dependentes da interação.

Esse é ponto pacífico, ou deveria ser, no estudo da diversidade humana. A despeito de qualquer teoria universalista da linguagem, da cultura e da cognição humanas, a diferença entre as relações que se dão dentro de uma mesma cultura con-vivida e entre culturas distintas é uma experiência recorrente demais para ser questionada, e poucos estudiosos contemporâneos diriam que isso se deve a uma peculiaridade da cultura do pesquisador (uma proposta que seria, hoje, surpreendente, se levarmos em conta a atual diversidade cultural entre os pesquisadores), da cultura do pesquisado ou da relação específica entre ambas. Aliás, se formos suficientemente minimalistas quanto à diversidade de língua e cultura, não é nem mesmo preciso ir ao Pacífico Sul. Estou convencido que é menos trabalhoso dialogar com minha filha adolescente que com os amigos dela, embora eu não (ou nem sempre) culpe, por isso, os seus hábitos lingüísticos particulares - ou os meus. Afinal, minha filha demonstra muito menos esforço conversando com as mesmíssimas pessoas.

trecho de Nós primatas em linguagem, Vianna, 2006, ps. 39-41