terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Ferra-se cavalos



Beto Vianna

Não há melhor remédio para o preconceito que sofrermos o dito cujo na carne. José Bento Monteiro Lobato, apesar do que dizem os politicamente corretos, é um bamba da nossa literatura. Nós, leitores, não merecemos ter a sua boa prosa proscrita de onde quer que seja. E apesar do que dizem os politicamente incorretos, Monteiro Lobato foi, sim, um pernicioso racista (aliás, um racista ativista), e não só pelos padrões da época, a ponto do país campeão no quesito segregacionismo (os EUA) rejeitar a publicação de uma obra sua, justo por carregar nas tintas do ódio à negra gente.


O que poucos dizem, pois esse assunto é mal digerido tanto por corretos quanto incorretos, é que Lobato também lutou contra um preconceito. E nesse caso, seu afazer literário dá-lhe boas credenciais, pois a ignorância com que se batia Monteiro Lobato leva o nome de preconceito linguístico (no livro “Preconceito linguístico”, Marcos Bagno cita o escritor a rodo; perdoe se roubo dali umas tantas ideias).


No longínquo ano de 1924 (quando, segundo os gramáticos de hoje, ainda não se judiava da língua de Camões), Monteiro Lobato escreveu o conto “O colocador de pronomes”, uma crítica aos prescritores da “língua culta” e do “português correto”. O personagem-título, um certo Aldrovando Cantagalo, vive guerra sem trégua contra os usuários da língua, supondo que esses deturpam o “verdadeiro idioma” (veja como o texto é atual!), ou seja, o conjunto anacrônico e incoerente de regras embalsamado nos manuais de gramática. A figura ridicularizada por Lobato encontra-se personificada hoje por tantos e bem-pagos consultores de gramática dos meios de comunicação. Talvez por isso, tal como Aldrovando, e como compensação por sua canhestrice linguística, eles tenham esses nomes psicodélicos, como Pasquale Cipro Neto e Dad Squarisi. Essas pessoas, com medíocre compreensão da linguagem (por descuido ou, quem sabe, razões de mercado), despejam rios de preconceito sobre as variações do português brasileiro, confundem língua com ortografia, e, o mais grave, o fazem com toda a legitimidade e repercussão que a velha elite e a grande imprensa lhes concedem.


Se você acha que isso é puro preconceito meu contra os gramáticos, ouçamos o grande Monteiro Lobato. No conto mencionado, Aldrovando encasqueta com uma tabuleta que diz “Ferra-se cavalos”. Quer porque quer corrigi-la, botando o verbo no plural (como ensinam as gramáticas de antanho e de hoje), ao que replica o ferreiro: “V.S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu”. Sabe o ferreiro, nem tanto o gramático, que cavalos não têm o hábito de se ferrar sozinhos.


Aldrovando veio ao mundo, diz o conto no início, “em virtude de um erro de gramática”. Também seu criador viveu um trauma com o “português correto”, reprovado, no exame para o Instituto de Ciências e Letras, em português oral!

Se Lobato não sabe português, e o resto de nós, humildes cordeiros?



Publicado em O Tempo, 09/02/13