domingo, 17 de outubro de 2010

A Ab Surdez é nossa

Parece não haver, entre os membros das comunidades Urubu Kaapor, uma distinção entre deficiência e eficiência auditiva, ou pelo menos, fica claro que essa distinção, se houver, não faz uma diferença na prática, como é sabido e vivido pelos surdos-mudos de nossa sociedade não-Urubu. Isso porque, ao contrário dos nossos surdos, que necessitam adequar-se política e lingüisticamente (pelo aprendizado de uma língua de sinais, pelo acesso a pessoas, processos e objetos específicos, pela “educação oral” e pressão por instrumentos e políticas públicas afirmativos), são os membros da sociedade Kaapor, em conjunto, que se “ensurdecem”, falando todos a língua de sinais Kaapor: o método submete-se ao sujeito. Surdos Kaapor não são surdos, são monolingües. Mesmo essa diferença não faz a diferença que, na prática, abre mais e melhores portas (ceteris paribus), àqueles, que, na sociedade brasileira, são falantes de uma segunda língua de prestígio, como o inglês ou o espanhol, ou simplesmente dominam a “norma culta” e uma cultura letrada.

Nem mesmo ao olhar aguçado e à disposição sempre generosa de Darcy Ribeiro pareceu evidente aquilo que acontecia bem debaixo de seu nariz (considerando, é claro, que nos anos 40-50 já havia tal disposição lingüística Kaapor em relação à surdez). Em seus Diários índios (RIBEIRO, 2006) que relatam o trabalho de campo do antropólogo entre os Kaapor nos anos de 1949 a 1951, Darcy conta-nos sobre a “velha surda-muda” Ñambú:

Essa velha é a graça da aldeia, muito trabalhadeira, está sempre desmanchando e retecendo as redes de sua gente, fazendo cordas de carauá, torrando farinha, enfim, trabalhando ativamente todo o dia e sempre séria. Às vezes lhe dá a veneta de brincar, aproveita uma contenda de crianças, se mete no meio e sai correndo das pedradas que lhe dão nas canelas. (RIBEIRO, 2006, p. 221).

Veja que Darcy descreve, perfeitamente, um acoplamento estrutural configurando um domínio lingüístico, uma ecologia de corpos: Ñambú, os demais índios, o tecer as redes, o torrar a farinha, as crianças, e até as pedradas na canela. Apenas para Darcy tais elementos surgem abruptamente (“Às vezes lhe dá na veneta”; “... e se mete no meio...”), pois já se encontram configurados (embora sempre reconfigurando-se) na rede de interações Ñambú-outros Kaapor. Para os índios, não há surpresa, e Ñambú só é a “graça da aldeia” para Darcy pois apenas o antropólogo tem dificuldade em articular sua própria versão de “surda”, com o acoplamento observado de Ñambu com o restante da tribo.

Os Kaapor constituem um bom exemplo da importância de considerarmos outras versões pois, assim como a única versão possível das emoções não é a passividade e a reatividade, a única versão de linguagem disponível também não é a de uma resposta a meio-ambientes cambiantes, ou a corpos ou discursos cambiantes, gerando distinções necessárias, como surdo-ouvinte, e mudo-falante.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Nós e o espaço relacional (biológico) da linguagem


Costumamos considerar o comportamento algo facilmente mutável, ou, pelo menos, mais maleável do que a “constituição biológica”. Se levarmos a sério o caminho explicativo das abordagens sistêmicas, no entanto, a situação é bem outra. Modos de vida, ou seja, as relações estabelecidas com o meio, são modos específicos de realizar a organização - seja humana, símia ou mamífera, no nosso caso -  e necessariamente conservadores, pois implicam a própria manutenção de nossa condição de ser-e-estar-vivos (durante a ontogenia) e a continuidade da linhagem (no fenômeno da reprodução). Mesmo no estabelecimento de uma nova linhagem, o organismo conserva parte do modo de vida, pois realiza sua ontogenia inicial no contexto do modo de vida parental. Nossa constiuição orgânica, ao contrário, pode variar imensamente: pode variar tanto quanto permita a realização do nosso viver. Se prestarmos atenção a um grupo qualquer de seres humanos, nos impressionamos com a diversidade de anatomias, estaturas, fisionomias e fisiologias, conformações físicas as mais variadas que, no entanto, prestam-se todas a um modo de vida comum. Mesmo entre as mais variadas culturas humanas é conservado um modo de vida que tem a ver com a história de nossa linhagem, e que nos diferencia de outros organismos. Não é isso que distingüimos quando dizemos que só o humano “tem linguagem”? Ou “tem cultura”? Ou uma existência espiritual ou simbólica? Com os organismos não-humanos ocorre o mesmo. A diversidade de formas da natureza sempre impressionou Darwin, e, em A origem, ele diz que uma compreensão abrangente da evolução passa por descobrirmos as “Leis da Variação” (DARWIN, 2002, p. 130-156).

Ao contemplar outra organização que também faz parte de nós, humanos, como a de grandes símios, identificamos rapidamente as enormes diferenças nos atributos físicos, ou, pelo menos entre “nós” e “eles” (nem todos sabemos distingüir um orangotango de um gorila, apesar de sermos mais aparentados ao gorila que o organgotango). Se atentarmos para os modos de vida que foram conservados em nossa antiga linhagem de grandes símios (que remonta a mais de 10 milhões de anos) nos impressionamos com o fato de seres tão diferentes realizarem coisas tão parecidas: a criação amorosa dos filhotes, a intricada rede social, o manuseio de alimentos e de outros objetos, a confecção (manual) deinstrumentos e muitos outros modos de conhecer, ou seja, de operar em interação com os elementos do entorno que nos permitem realizar nossa organização de grandes símios.

Como um tipo particular do modo de vida - a relação organismo-meio - temos a relação estabelecida entre dois ou mais organismos, a co-ontogenia (VIANNA, 2006, p. 308-313). Tal como em relação ao entorno, dois organismos em acoplamento estrutural irão mudar suas estruturas de modo correspondente, na interação. Se essa história de relações durar o suficiente, se a interação for recorrente e houver uma recursividade nessa interação (ou seja, se as mudanças em cada um dos organismos em interação servir para a mudanças subseqüentes nos dois sistemas) temos uma coordenação de ações ente os organismos, que é o estabelecimento de um domínio lingüístico, base da formação de um sistema social. Assim, se atentarmos, não para o “conteúdo” ou a “forma” dessas relações, para os elementos que são utilizados no proceso de interação e a maneira como são utilizados, mas prestarmos atenção na recursividade do processo interacional co-ontogênico, estaremos decrevendo os fundamentos biológicos do fenômeno da linguagem. 

O principal estranhamento entre minha própria abordagem e a da Biologia do Conhecer, é que, nesse sistema explicativo, é preciso não apenas que haja coordenações de ações (o domínio lingüístico que descrevi acima), mas coordenações de coordenações de ações, ou seja, que o próprio domínio consesual do encontro recorrente (de gestos, posturas, sons entre outros) seja utilizado, recursivamente, no processo de coordenar ações dos organismos. Para Maturana, é na linguagem (ou “linguajar”; MATURANA, 1997b, p. 175) que surge o humano, e, como modo de conservar sua organização, o humano vive nesse “fluir de interações recorrentes” (MATURNA, 1997b, p. 168). Concordo com Maturana, e concordo principalmente sobre o que ele diz sobre “denotação” (MATURANA, 1997, p. 150):

[Denotação] não é uma operação primitiva. Ela requer concordância - consenso - para a especificação tanto do denotante quanto do denotado. Se a denotação, portanto, não é primitiva, não pode ser tampouco uma operação lingüística primitiva.

É por concordar com a Biologia do Conhecer sobre o que é uma operação primitiva - o domínio consensual - que considero a realização do domínio consensual humano na linguagem um caso particular do espaço relacional co-ontogênico em que vive todo e qualquer organismo. Tudo aquilo que argumentei sobre a cognição e a evolução - ou seja, que apontar para informações prévias no mundo ou na mente não explica o fenômeno do conhecer, e apontar para informações prévias no ambiente ou no genoma não explica o fenômeno da deriva evolutiva -, serve, igualmente, para a linguagem. 



Darwin, Charles. A origem das espécies. Tradução de Eugênio Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002
Maturana, Humberto. Biologia da linguagem: a epistemologia da realidade. Tradução de Cristina Magro. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (Orgs.). A ontologia da realidade/Humberto Maturana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. p. 123-166.
Maturana, Humberto. Ontologia do conversar. Tradução de Cristina Magro e Nelson Vaz. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (Orgs.).  A ontologia da realidade/Humberto Maturana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997b. p. 167-181.
Vianna, Beto. Nós primatas em linguagem: relações lingüísticas como um processo biológico. Belo Horizonte, 2006. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Ponto Pacífico na linguagem


Uma antropóloga do século XXI, falante nativa do inglês, desembarca em uma ilha do Pacífico com o intuito de estudar os costumes dali e pouquíssimo conhecimento da língua local. Talvez ela tenha uma vaga idéia da família lingüística a que aquele falar pertence, talvez ela tenha uma vaga idéia do tipo de vida que os ilhéus levam. Se a antropóloga assumir que quaisquer tentativas de interação são inúteis, pela dessemelhança dos hábitos e da língua, a pesquisa já nasceu condenada, é claro, e é portanto, preciso achar meios de interagir. Mas a antropóloga, que, embora “verde” no trabalho de campo, tem um bom trânsito na literatura em etnografia, não duvida que sua própria cultura é diferente da de seus sujeitos, de que sua própria língua é diferente da deles. O que torna a negociação difícil, trabalhosa, no entanto, não são essas diferenças por si mesmas, mas o processo de inter-relação, em que, entre uma floresta de diferenças óbvias, faz-se necessário encontrar caminhos, clareiras, atalhos, esses bem mais sutis. É necessário um “esforço interpretativo”, não apenas na elaboração da descrição que a antropóloga irá fazer de seus sujeitos mas no próprio momento da interação.

Após uns dois anos no campo, ao voltar para sua terra e para a vida acadêmica com os dados debaixo do braço, a antropóloga vai reencontrar um mundo de relações totalmente distinto. Vai comunicar sua pesquisa em uma linguagem bem sua conhecida, não só o inglês mas todo um modo de interagir próprio da academia. Nesse outro mundo não há menos necessidade de negociação diária que no primeiro, mas a diferença é a longa história de relações vivida pela antropóloga em seu “nicho cultural”, qualitativamente diferente daquelas poucas centenas de dias no meio de perfeitos estranhos (não estou querendo relativizar muito minha própria história inventada, mas é claro que percursos são percursos, não importa se longos ou breves: uma atitude emocional mais positiva da pesquisadora em relação aos ilhéus que em relação a seus pares sempre pode reverter a facilidade com que ela se relaciona em um e outro espaço).

A pergunta simples, cuja resposta é bastante consensual entre os cientistas humanos é: onde está a diferença entre aqueles dois mundos? Certamente não na língua ilhéu, por maior que seja o número de seus fonemas “exóticos”, de cliques e glides nasais. Também não poderia estar na cultura da ilha, ainda que seus habitantes comam suas próprias crianças ou experienciem um relativismo cósmico, para nos lembrarmos dos Hopi de Benjamin Lee Whorf (1998). Tampouco a diferença está nas peculiaridades da língua inglesa ou da cultura ocidental, e, já me adiantando a uma terceira hipótese, também não iremos encontrar a resposta na diferença entre esses dois modos de vida particulares (chás às 5 horas versus reuniões coletivas de ingestão de bebidas mágicas, por exemplo). Uma boa evidência de que nenhuma dessas três alternativas explica a desenvoltura desigual da antropóloga nos dois mundos é que os habitantes da ilha também tendem a sentir-se mais à vontade às voltas consigo mesmos. Para usar um jargão acadêmico contemporâneo, conforto e desconforto são estados emocionais situados, dependentes da interação.

Esse é ponto pacífico, ou deveria ser, no estudo da diversidade humana. A despeito de qualquer teoria universalista da linguagem, da cultura e da cognição humanas, a diferença entre as relações que se dão dentro de uma mesma cultura con-vivida e entre culturas distintas é uma experiência recorrente demais para ser questionada, e poucos estudiosos contemporâneos diriam que isso se deve a uma peculiaridade da cultura do pesquisador (uma proposta que seria, hoje, surpreendente, se levarmos em conta a atual diversidade cultural entre os pesquisadores), da cultura do pesquisado ou da relação específica entre ambas. Aliás, se formos suficientemente minimalistas quanto à diversidade de língua e cultura, não é nem mesmo preciso ir ao Pacífico Sul. Estou convencido que é menos trabalhoso dialogar com minha filha adolescente que com os amigos dela, embora eu não (ou nem sempre) culpe, por isso, os seus hábitos lingüísticos particulares - ou os meus. Afinal, minha filha demonstra muito menos esforço conversando com as mesmíssimas pessoas.

trecho de Nós primatas em linguagem, Vianna, 2006, ps. 39-41 

quarta-feira, 14 de abril de 2010

linguagem sem deuses na poética suiá

Copiando receita que vi no blog de George Cardoso - http://oarmengue.blogspot.com/2008/08/flores-da-fala-poetica-suia.html - transcrevo aqui o mesmo belo trecho do Oriki orixá, de Antônio Risério (Perspectiva, 1996). Saudável pra linguistas, antropólogos, biólogos, índios e quem mais quiser ou puder.

Poética suiá
Antônio Risério

“Contrariando a tribo dos antropólogos, os (índios) suiás escolheram, para efeitos de comparação intergrupal, os ornamentos e o canto. Os discos coloridos usados nas orelhas e nos lábios apontam para a relevância que esses índios dão ao ouvir e ao falar, como faculdades sociais por excelência. O ouvido recebe e retém os códigos tribais. E, para além do silêncio, também socialmente importante, há duas espécies de fala: o sermo quotidianus e a oratória, plaza speech, que é o discurso masculino na praça da aldeia, com seu ritmo especial, seu estilo recitativo, seu conjunto de fórmulas. (…) Mas o ponto culminante da oralidade suiá, individual e coletivamente, está no canto. Na palavra-canto. E que se frise o fato de que a música suiá não envolve instrumentos musicais. É exclusivamente vocal. A palavra desenha plena o seu espaço. Palavra pairando solitária na antemanhã, ou estridulando na cacofonia das canções que atravessam a noite. Mas há mais (…) os suiás não têm deuses nem mito de criação - e ignoram seus ancestrais (fabricam uma fascinante espécie de história espacial, onde as peripécias tribais são marcadas pelos lugares em que ocorreram e não pelos heróis que dela participaram). Não tenho notícia de nada igual em qualquer outra parte do mundo. E assim somos conduzidos à estranha e inesperada conclusão de que pode haver um povo sem deuses, mas não um povo sem poesia.”

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Domínio consensual, linguagem e evolução


Sigo algumas descrições da chamada Biologia do Conhecer (a “epistemologia chilena” de Maturana e Varela) em relação à linguagem. Por exemplo, a de que o fenômeno da denotação não podem ser uma operação primitiva, mas posterior a um  domínio consensual. E talvez me afaste um pouco da Biologia do Conhecer ao considerar que a realização do domínio consensual humano na linguagem é um caso particular do espaço relacional co-ontogênico em que vive todo e qualquer organismo. E tudo o que isso implica em termos de descrição do fenômeno cognitivo - ou seja, que apontar para informações prévias no mundo ou na mente não explica o fenômeno do conhecer, e apontar para informações prévias no ambiente ou no genoma não explica o fenômeno da evolução -, serve, igualmente, para a linguagem.

Não há nenhum problema - ao contrário, considero profundamente relevante - em se estudar o código lingüístico, como fazem de variadas, interessantes e produtivas maneiras as ciências lingüísticas, mas coisa bem diferente é afirmar que esse código é o produto de uma cognição privilegiada (aqui e agora) ou da evolução de uma cognição provilegiada (no percurso genealógico). É claro que, como seres humanos, não podemos pisar fora da linguagem humana para fazer o que quer que seja, e isso, ao menos na tradição ocidental, e pelo menos desde os gregos, tem sido invariavelmente confundido com incríveis poderes de representar a realidade exibidos pelo código lingüístico humano. 

Quando a linhagem humana divergiu da linhagem que deu origem aos atuais bonobos e chimpanzés, os organismos humanos passaram a conversar entre si de modo distinto da realização co-ontogênica da linhagem ancestral. Do mesmo modo, a co-ontogenia do grupo humano-bonobo-chimpanzé divergiu da linhagem gorila em um passado mais distante, e estes dos orangotangos, há mais tempo ainda. Esses grupos foram, à medida em que surgiam como populações distintas, deixando de “conversar” (realizar suas co-ontogenias) entre si. A linguagem vista como espaço relacional, e, não, como um atributo possuído ou não pelos organismos, está de fato implicada na evolução, mas de modo inverso do que costumamos encontrar nos estudos sobre “evolução da linguagem”. É a conservação - ou ruptura -, dos domínios lingüísticos consensuais que permite a conservação - ou a ruptura -, das populações de organismos.

terça-feira, 2 de março de 2010

PB na Nigéria: da política à teoria


A África, explorada pelos europeuscentenas de anos, foi efetivamente ocupada somente em fins do século XIX, quando a maioria dos países americanos, e do restante do terceiro mundo, exibiam o estatuto de nações independentes. Essa colonização “tardia”, e o modo particularmente perverso como foi conduzida, além de afetar o desenvolvimento africano, deixou marcas particulares no contexto lingüístico. Se nas Américas grande parte das línguas indígenas foi exterminada junto com seus falantes, a África manteve um mapa lingüístico próximo à da condição pré-colonial, em que a virtual ausência de estados nacionais (mas coesão lingüística e cultural entre povos afins, ouetnias”) propiciou a sobrevivência da diversidade lingüística. É claro, após a “partilha da África” pelos europeus, impuseram-se as línguas dominantes na história colonial africana, mas sempre como segunda língua para os africanos, que deviam aprendê-la na escola ou nos contatos comerciais ou servis com os colonizadores. A língua materna de estoque africano mantinha-se, e ainda se mantém, para a maioria da população do continente (Ajiboye, 2005).

A questão da língua estrangeira na África deve, portanto, observar esse panorama lingüístico, com três aspectos principais: a permanência das línguas indígenas como línguas maternas (nem sempre coincidentes com os estados nacionais criados na colonização); a imposição da língua do colonizador como língua oficial, criando uma forte demarcação entre segunda língua (oficial, mas não materna) e língua estrangeira (nem oficial nem materna); as necessidades e motivações políticas e econômicas em um processo recente de independência, como a aproximação com nações economicamente fortes e as relações comerciais entre vizinhos que possuem suas próprias línguas oficiais não-maternas. A presença da língua oficial ao lado de múltiplas línguas em cada estado nacional cria situações de multilingüismo (mais de uma língua falada dentro de uma comunidade de fala), diglossia (duas línguas ou variantes da língua usada em situações específicas na comunidade) e code-swicthing, a alternância entre línguas ou variantes em uma mesma situação conversacional. No entanto, as políticas lingüísticas são planejadas e implantadas pelo estado nacional, e, não, pelas comunidades de fala, muitas vezes em prejuízo de algumas delas.

A Nigéria é um belo exemplo das caracterizações acima. A língua oficial é o inglês, mas as línguas nacionais contam-se às centenas - 510 línguas vivas, segundo o catálogo lingüístico Ethnologue (Lewis, 2009) -, algumas com o número de falantes na casa dos milhões. As três mais faladas (hausa, iorubá e igbo) têm estatuto privilegiado de “co-oficiais”, sendo ensinadas como segunda língua no sistema nacional de educação. Situada no oeste africano, a Nigéria tem ainda outras particularidades, como a histórica influência islâmica, a vizinhança de países de língua oficial francesa, e vizinhos que compartilham algumas de suas línguas maternas (por exemplo: hausa e kanuri em Níger; iorubá em Togo e Benin; igbo na Guiné Equatorial e nos Camarões). Assim, línguas como o árabe, o francês e as línguas maternas partilhadas transformam-se em modos de comunicar largamente disseminados, ou “segundas línguas”, de importância regional. O francês é ensinado regularmente nas escolas nigerianas, e o árabe, nas escolas corânicas, bastante comuns nesse país altamente islamizado.

É no contexto desse emaranhado de línguas maternas, segundas línguas e línguas oficiais que devemos observar o ensino de língua estrangeira na Nigéria, e o ensino de PB em particular. Na verdade, o português não é uma simples língua estrangeira na Nigéria, por vários fatores. Primeiro, o português faz parte daquelas línguas européias que tiveram um importante (e triste) papel na colonização da África como um todo, sendo hoje língua oficial em seis países daquele continente (Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe). Ainda, Portugal vinha agindo na África desde o século XV, e o português utilizado como língua franca nos locais de comércio com cidades e reinos africanos. Lagos, capital nigeriana até os anos 90, foi um entreposto comercial português até a chegada dos ingleses na região. Finalmente, a fase mais tardia do tráfico de escravos, meados do século XIX, levou milhares de iorubás para países como Cuba e o Brasil. Após o fim oficial da escravidão, muitos ex-escravos voltaram para a atual Nigéria, estabelecendo núcleos de falantes de PB na região iorubá. Ou seja, há uma forte ligação histórica da Nigéria não apenas com a língua portuguesa, mas com o próprio PB, apesar de hoje a situação ser bem diversa