revisão: Daniele Martins
Fifa é só uma sigla. Tal como a CIA, o
ISSN, o INSS ou o SNI. Na maioria dos casos, esse é o máximo de
importância que a Fédération merece de todos nós. Infelizmente, tal como
outras instituições acima sigladas, a Fifa tem o hábito cretino de se
meter na vida dos outros, nem sempre com bons resultados. Para além de
traçar perímetros privados na casa pública alheia, a Fédération é campeã
mundial em calar a pluralidade linguística de seus Estados associados,
entendendo uma, ou, na pior das hipóteses, duas línguas. Gaba-se de ter
mais filiados que a ONU (e tem), mas só consegue abrir a boca usando um
terço das línguas de trabalho de sua sigla irmã.
Mas negócio é business. Na hora de meter a
mão na grana, fechar patrocínio e surrupiar divisa de país-sede, não há
que perder tempo com esse mundaréu de dialetos que povoa as
republiquetas de banana, majoritárias no universo de filiadas. Todas
elas, afinal, votam em inglês (ou francês, na pior das hipóteses). E a
parcimônia linguística não é privilégio dos países-membros. O bom
exemplo vem do alto-escalão. O brasileiro Jean-Marie Faustin Goedefroid
Havelange bem podia usar, no trabalho, o carioquês das Laranjeiras, onde
foi criado. Mas é com uma língua de comércio, o inglês (ou, na pior das
hipóteses, o francês), que o padrinho desmandava no império da bolada. E
cê já sabe em que língua vai xingar o juiz?
Eles falam aqueles dialetos
É. “Eles” falam “aqueles dialetos”. E o
que nós, cidadãos de bem, queremos dizer quando dizemos “dialeto” é:
língua sem importância. Língua importante (ou apenas “Língua”) é aquela
que se aprende na Cultura Inglesa, na Aliança Francesa, no
Goethe-Institut, no Instituto Cervantes, ou, na pior das hipóteses, na
Fundação Torino. Somos tão acostumados ao uso internacional das línguas
europeias, que não duvidamos da sua exclusividade nas relações
exteriores. Por isso o chinês (e há muito, o japonês), com pinta de
recém-ingressado na confraria do capital global, se arrisca a virar
ex-dialeto. Já é quase Língua, pro nosso gosto. E eu me esquecia: essas
línguas de fazer compras são também (dizemos nós) “línguas de cultura”. É
com elas que se escuta o canal Sony, ou, na pior das hipóteses, se vai
ao Louvre. E o português? Sim, esse também é Língua. Pode não ser o fino
da bossa, mas ao menos tem suas raízes bem fincadas do outro lado do
Atlântico Norte. E ao menos quando não circula feito bicho solto, cheio
de erros de concordância, na boca mole do povo. Nós, brasileiros, não
somos totalmente selvagens. Camões por certo não era.
E então, quem são “eles” que falam “aqueles dialetos”? Por falar nisso, cê já tem ideia em que língua vai xingar o juiz?
Eles
Eles são os africanos. Nós, brasileiros,
conhecemos “eles” muito bem. Nossos tataravós conheciam ainda mais (por
propriedade ou na pele), quando ainda havia por aqui os boçais. Na gíria
de antanho, boçais eram os pretos que eram mais africanos que menos. E
isso queria dizer, entre outros barbarismos, não saber português. Será
difícil entender por que “boçal” virou sinônimo de estúpido? Se um
falante de dialeto não fala A Língua, deve ser sinal de estupidez. Achou
isso estúpido? Pois é. Mas não vamos tirar conclusões apressadas sobre a
capacidade mental dos nossos antepassados. Melhor ouvir o que dizemos
hoje, que é mais didático.
Como a Pittacos teima em não me dar
espaço para falar dos 56 países-membros africanos da Fédération (dois a
mais que a ONU), vou me concentrar em três países da África que vêm à
Copa este ano. E então meu texto, se não tiver outro interesse, irá
prestar esse serviço de reportagem atualíssimo. Outra coisa: pra não
ficar repetindo “dialeto” o tempo todo, vou chamar dialeto de “língua”,
com l minúsculo, e Língua de “Língua”, com L maiúsculo. Assim, se
economizamos em palavras, conservamos a distinção de classe. Coloquei os
nomes dos países nas respectivas Línguas, para contrastar ainda mais a
realidade do lugar com a nossa bem educada estupidez.
Algérie
Ou al-Jazair, em árabe (língua materna de
cerca de 300 milhões de pessoas no mundo todo, e talvez o triplo disso
em número de falantes secundários, o que nas duas contas ultrapassa
vergonhosamente a maioria das Línguas; um dia daremos um jeito nessa
supremacia bárbara).
Começo pela Argélia, não por questões alfabéticas (palavra formada com as duas primeiras letras da escrita usada no árabe, alif e bet),
mas por ser o país africano mais seco em número de línguas: 17, apenas,
e uma Língua, o francês. A secura facilita nossa questão de fundo, mas
meio invertida, que é saber como os jogadores iriam (ou poderiam, não
fosse a ditadura monotônica da Fédération) xingar o juiz. E facilita
introduzir uns termos técnicos, que irão valer pros outros países.
A França estabeleceu uma colonização
brutal na Argélia, assunto que ultrapassa a estupidez-tema deste texto.
Confiscou terras e reduziu a população muçulmana (ali há mil anos) e os
bérberes (há dez mil) à categoria de subgente, até ser devidamente
chutada do país, lá pela Copa de 62. O resultado é que hoje há, se
tanto, dez mil falantes de francês num país de 30 milhões de habitantes.
A taxa de letramento é de 70%, e, portanto, os argelinos cultos devem
estar lendo noutra língua. Em árabe, é claro. A língua oficial é o árabe
clássico, e a língua veicular (usada pela grande maioria da população) é
o argelino, um dialeto (não por desimportante, mas por ser variante) do
árabe. Entrando pelo deserto, você se arrisca a encontrar o kabila
(cinco milhões de falantes), o tachawit (dois milhões) e outras línguas
bérberes, todas com milhares de usuários. Já ouvi locutor esportivo
irradiar que na Argélia “fala-se francês”. No sonho dele. O goleador
Islam Slimani, jogador do Sporting português (de que sou torcedor),
nasceu na capital Argel e deve falar, de berço, árabe argelino. Com o
perdão das senhoras muçulmanas presentes, ao juiz ele dirá algo como
اللعنةعليك.
Côte D´Ivoire
E chegamos ao sul do Saara, a África
negra, e os problemas se avolumam, bem como as delícias. No final do
século XIX, os europeus cortam o continente africano como uma bisnaga
sangrenta e repartem o pão e o vinho entre si, bons cristãos que sempre
foram. Nasce, entre outras fatias, a África Francesa Ocidental, que
inclui a nossa Costa do Marfim. Com a ajuda da Aliança Francesa
(instituição desmascarada por Walter Rodney como coviolentadora da
África ao lado das minas terrestres) a colonização deixou, de legado, o
francês. Oficial, até hoje. Que bom, os marfinenses têm uma Língua pra
conversar com o Blatter.
Nossa incorrigível estupidez
hollywoodiada, escolarizada e informatizada é pensarmos que até a
chegada do deus branco só havia ali tribos de encolhedores de cabeças. A
região é reconhecidamente povoada há 15 mil anos e conhecida desde os
egípcios e romanos como efervescente rota comercial. Há uns mil anos
surgiram impérios como o de Mali e Songhai (muçulmanos), os Jula (um
povo Mandé) fundaram um império e vários reinos, além da presença dos
Ashanti e dos nômades bérberes. Sim, os franceses detonaram o lugar, mas
mandar pelos ares um contexto linguístico milenar seria muita
pretensão.
Com 20 milhões de habitantes, a Costa do
Marfim tem 80 línguas e uma Língua. Essa tal, a oficial, é falada por 17
mil pessoas. Mas, como acontece há mil anos, se for ter Copa por lá,
prefira aprender o jula, que é língua materna de dois milhões de pessoas
e falado por sete milhões como segunda língua. O baulé é falado por
outros dois milhões de marfinenses, o dan, por 1,5 milhão, e o aniyin já
deve ter um milhão de falantes. E seguem dezenas de línguas na casa das
dezenas e das centenas de milhares de falantes. Esse mundo de gente
deve ser louco em ficar barbarizando em tantos dialetos (ops!) línguas
desimportantes, no dia a dia, de dia e de noite, todo santo dia.
O crack Didier Drogba nasceu em
Abidjan, cidade cosmopolita, que os doutos dizem ser “a terceira cidade
de fala francesa do mundo”. No sonho deles. O nome da cidade nasceu de
uma estupidez. Um explorador perguntou (em alguma Língua) o nome do
lugar a alguém que passava. O cara, sem entender aquele nhenhenhém
europeu, respondeu m’bi min djan (“estou cortando folhas”) em
ébrie, língua falada hoje por cem mil pessoas. Dá pra ver que é inútil
xingar um juiz da Fédération em ébrie.
Ghana
O que foi dito da Costa do Marfim pode-se dizer de Gana, com algumas superlatividades. Há ali 80 línguas e uma Língua.
O inglês, Língua e oficial, é falado por
um milhão de pessoas, mas para a maioria, só como segunda língua. O que
nos deixa com 23 milhões de pessoas que não precisam saber que the book is on the table,
ainda que, com uma taxa de letramento de 60%, haja, de fato, livros
ganeses em mesas ganesas. Mas ler o quê, se não há “língua de cultura”?
Não há em nossos sonhos. O akan, língua do povo Ashanti, que estabeleceu
reinos milenares na região, é escrito há séculos, seja em árabe ou
alfabeto romano, além de um sistema paralelo próprio, o adinkra,
símbolos que representam conceitos e aforismos. Hoje, quase metade do
povo ganês joga conversa fora em akan. Gana é palco de vários grupos de
línguas da grande família Níger-Congo: as línguas Kwa (que incluem o
akan), as línguas Gbe (que têm o ewé, falado por cerca de três milhões
de ganeses), as línguas Gur (do povo Dagomba, que também ergueu império
na região e é também milionária em falantes), as línguas Mandé, e outros
grupos, tão importantes quanto. No norte, o hausa, língua da família
Afro-Asiática, é usado a rodo como língua de contato entre ganeses de
línguas diferentes. E no país surgiu uma língua de contato baseada no
inglês, usada por milhões de pessoas (favor não confundir essa joia com o
dialeto dos Beatles: o vocabulário tem base inglesa, mas a gramática é
bem mais divertida).
Os nomes ganeses dão um show à parte. Num
sistema que parece remontar tanto aos antigos Ashanti quanto ao povo
Ewé, o primeiro nome da criança é o dia da semana em que nasceu. Assim,
de segunda-feira a domingo, temos Kwadwo, Kubbena, Kwaco, Kwao, Kofi,
Kwamin e Kwashi. Por exemplo, Kofi Anan, ex-secretário-geral da ONU, tem
o mesmo nome do amigo selvagem de Robson Crusoé. O sistema se espalhou
pelo Caribe, principalmente na Jamaica, e até nos USA (omg!) usa-se a
antroponímia ganesa, educadamente traduzida na Língua do colonizador
britânico.
Kwadwo “Kojo” Asamoah, o Segunda-feira de
Gana, jogador da Juventus, nasceu na urbanidade multicultural de Accra
(estou meio desconfiado da informação de que as estrelas africanas
nasceram todas nas capitais). Digamos, com alguma margem de erro, que
Kojo ofenderia o juiz com elegância xingando em akan. Ou em hausa, se o
bonito é ser internacional.
Nibe ni yio je ko Copa
Vai ter Copa pra dois outros selecionados
africanos: Camarões e Nigéria. Dos falares desses países, é até
covardia falar. São 280 línguas em Camarões e 520 na Nigéria. Sim, 520.
Claro que você pode dizer, “Ah, mas eles falam aqueles dialetos”. Bom,
já discutimos sobre isso. Só como exemplo rápido, 13 milhões de pessoas
falam alguma variedade do fulani nos Camarões. E as três grandes línguas
nigerianas, o hausa, o igbo e o iorubá, são faladas cada uma por cerca
de 20 milhões de pessoas. Tem literatura, vencedor de prêmio Nobel,
civilizações milenares e o escambau. E são tipo exportação. Ou você
nunca comeu um acarajé (acara, “bolo de feijão”, je, “comer”)?
Uma das sacadas nigerianas é a política
linguística que, bem ou mal (pior do que mereceria), respeita essa
realidade estonteante, escutando a importância de cada língua para as
pessoas que a utilizam. Em cada região do país, a principal língua local
é o meio de instrução no ensino primário. No segundo grau, outra língua
regional nigeriana é introduzida, e o francês é oferecido como segunda
língua. O inglês, Língua oficial, é o meio de instrução tanto no ensino
secundário quanto no superior, mas na universidade os alunos têm
oportunidade de aprender uma grande língua africana não nigeriana, como o
árabe, o fulani ou o swahili. Ni nzuri sana!
Uma estupidez nigeriana, muito semelhante
à que se pratica no Brasil, é não dar o status devido ao falar que, de
fato, é a grande língua nacional: o naija. De base vocabular inglesa e
gramática africana, o naija é falado por todo o país, por 30 milhões de
pessoas (mais que qualquer uma das “três grandes”) e amplamente
utilizado como língua veicular, ou de contato. É língua franca entre as
classes mais pobres das grandes cidades, e língua corrente dos
habitantes dos vilarejos na zona rural em muitas regiões do país. Só não
é plenamente aceito por conta do forte preconceito que o naija sofre
das classes finas e educadas – os coxinhas nigerianos -, tido como
“inglês corrompido” e descartado em todas as esferas de poder como
candidato a língua da nação.
Se você prestou atenção a essa descrição
do naija, vai se lembrar de uma língua (e suas variantes) falada pela
maioria dos brasileiros, e que é motivo de chacota nos salões
empetecados, na imprensa, e até no Facebook e no Diário Oficial da
União. “Português errado” é o que dizemos da língua usada no dia a dia,
de dia e de noite, todo santo dia, pela maior parte de nós mesmos! Não é
estúpido isso? Pois é. O mais engraçado é que o outro português – o
“correto”, A Língua – é exaustivamente martelado por doze anos seguidos
na escola e só entra na cabeça de uns pouquíssimos eleitos. Deve ser a
língua das esferas, de Pitágoras. Um trem divino pra burro.
Quer fazer um teste? Tente xingar um juiz brasileiro dizendo vai-o tu, ou a torcida do Corinthians dizendo ide-o vós, e verás que não serás compreendido (e não traduzirei, porquanto são expressões chulas).
Sua excelência, o juiz
O personagem principal deste texto é, de
fato, o principal: aquele que apita no jogo. Mas, como cantou o saudoso
Manduka no samba “Mané Garrincha”, “não há juiz nesse mundo/ que tire do
povo esse gol”. Então, vejamos. Um dos juízes convocados para o mundial
em solo pátrio é Bakary Papa Gassama, da Gâmbia. No site da Fédération,
consta que a “língua natal” do magistrado esportivo é o inglês. Será?
A Gâmbia tem uma população de um milhão e
meio de pessoas, dez línguas e uma Língua. O mandinka é falado por
metade da população, o fulani por 300 mil pessoas, o wolof por 200 mil, e
o inglês tem mil falantes como língua materna. Se esses dados estão
corretos, eu aposto mil reais contra o seu um real como o juiz Papa
Gassama não está entre os menos de 0,1% da população que balbuciou suas
primeiras palavras na Língua de Shakespeare. Em suma, pode xingar o
rapaz em mandinka. Com uma probabilidade de 50%, Papa Gassama vai levar o
desaforo pra casa.
Como o preconceito não tem limites, e a
arena de futebol é o templo das bananas atiradas (e, às vezes,
engolidas), sempre podemos dizer que pouco nos dá, torcedores da
potência canarinho, a língua que fala um juiz africano. Quem vai apitar a
final Brasil x Uruguai será, na pior das hipóteses, um italiano,
falante europeu legítimo de uma Língua. E essa nem carece muita
tradução, posto que muitos brancos entre nós (brasileiros e uruguaios)
são de legítima ascendência cosa nostra. Tutti gente de bem.
O árbitro italiano convocado é Nicola
Rizzoli. O cara nasceu na comuna de Mirandola, um pitoresco vilarejo
(todo vilarejo europeu é pitoresco) na província de Modena, norte da
Itália. A tradição, a cultura e a erudição de Mirandola deram ao mundo
seu filho mais ilustre, Giovanni Pico della Mirandola, filósofo
renascentista de notório saber. Sim, a vida é bela. E bela é a mentira
que o site da Fédération nos conta ao jurar que “italiano” é a língua
natal do signor Rizzoli. Se ele nasceu onde nasceu, deve ter nascido
falando emiliano, um dialeto! (e não sou eu que o digo: os italianos
xingam suas próprias línguas de “dialeto”). Vai ser complicado xingar o
signor Rizzoli. O emiliano não soa como o italiano, pois é uma língua
que pertence ao grupo galo-itálico (o italiano é do grupo
ítalo-dalmático). E pode nem haver dicionário, pois o emiliano é um
idioma meio jogado às traças, quase que só falado na região, mas
seguramente na cidadezinha de Miràndla, que é como chamam Mirandola “em
dialeto”.
Concluindo, se o centroavante uruguaio escorregar na pequena área e o juiz for na dele, você pode gritar sem medo de errar: socc´mel! Isso não é emiliano, é bolonhês. Mas o signor Rizzoli vai entender, e eu garanto que é muito feio.
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Post scriptum: a palavra
“xingar” entrou para o português, que é uma língua indo-europeia do ramo
itálico, a partir do quimbundo, que é uma língua níger-congolesa do
ramo bantu. Nenhuma das duas é um dialeto.
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