Parece não haver, entre os membros das comunidades Urubu Kaapor, uma distinção entre deficiência e eficiência auditiva, ou pelo menos, fica claro que essa distinção, se houver, não faz uma diferença na prática, como é sabido e vivido pelos surdos-mudos de nossa sociedade não-Urubu. Isso porque, ao contrário dos nossos surdos, que necessitam adequar-se política e lingüisticamente (pelo aprendizado de uma língua de sinais, pelo acesso a pessoas, processos e objetos específicos, pela “educação oral” e pressão por instrumentos e políticas públicas afirmativos), são os membros da sociedade Kaapor, em conjunto, que se “ensurdecem”, falando todos a língua de sinais Kaapor: o método submete-se ao sujeito. Surdos Kaapor não são surdos, são monolingües. Mesmo essa diferença não faz a diferença que, na prática, abre mais e melhores portas (ceteris paribus), àqueles, que, na sociedade brasileira, são falantes de uma segunda língua de prestígio, como o inglês ou o espanhol, ou simplesmente dominam a “norma culta” e uma cultura letrada.
Nem mesmo ao olhar aguçado e à disposição sempre generosa de Darcy Ribeiro pareceu evidente aquilo que acontecia bem debaixo de seu nariz (considerando, é claro, que nos anos 40-50 já havia tal disposição lingüística Kaapor em relação à surdez). Em seus Diários índios (RIBEIRO, 2006) que relatam o trabalho de campo do antropólogo entre os Kaapor nos anos de 1949 a 1951, Darcy conta-nos sobre a “velha surda-muda” Ñambú:
Essa velha é a graça da aldeia, muito trabalhadeira, está sempre desmanchando e retecendo as redes de sua gente, fazendo cordas de carauá, torrando farinha, enfim, trabalhando ativamente todo o dia e sempre séria. Às vezes lhe dá a veneta de brincar, aproveita uma contenda de crianças, se mete no meio e sai correndo das pedradas que lhe dão nas canelas. (RIBEIRO, 2006, p. 221).
Veja que Darcy descreve, perfeitamente, um acoplamento estrutural configurando um domínio lingüístico, uma ecologia de corpos: Ñambú, os demais índios, o tecer as redes, o torrar a farinha, as crianças, e até as pedradas na canela. Apenas para Darcy tais elementos surgem abruptamente (“Às vezes lhe dá na veneta”; “... e se mete no meio...”), pois já se encontram configurados (embora sempre reconfigurando-se) na rede de interações Ñambú-outros Kaapor. Para os índios, não há surpresa, e Ñambú só é a “graça da aldeia” para Darcy pois apenas o antropólogo tem dificuldade em articular sua própria versão de “surda”, com o acoplamento observado de Ñambu com o restante da tribo.
Os Kaapor constituem um bom exemplo da importância de considerarmos outras versões pois, assim como a única versão possível das emoções não é a passividade e a reatividade, a única versão de linguagem disponível também não é a de uma resposta a meio-ambientes cambiantes, ou a corpos ou discursos cambiantes, gerando distinções necessárias, como surdo-ouvinte, e mudo-falante.
abaixo, a violência
Há 7 anos
Gostei muito do que foi exposto sobre a tribo Urubu-Kaapor, que ouvi falar apenas como uma tribo que se comunicava por língua de sinais. Mas devo informar que o termo surdo-mudo é equivocado e antiquado. Já não se usa mais esse termo pois o mutismo não está diretamente ralacionado à surdez. O aparelho fonador do surdo está, em princípio intacto. Sua dificuldade na fala se deve tão somente ao fato de não ouvir.
ResponderExcluirOk, obrigado pela correção!
ResponderExcluirBoas considerações, sou intérprete de LIBRAS e estudante de antropologia. Estou começando a pesquisar sobre os urubu kaapor. São fascinate, o modo como se relacionam com os surdos.
ResponderExcluir