segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O rei mídia


Beto Vianna

Há muitos anos havia um rei, mau como todos os reis. Esse rei, de nome Midas, fizera um favor a Dionísio, e o deus retribuiu concedendo-lhe um pedido. O resto da história, a leitora ou o leitor devem conhecer: Midas quis mudar em ouro tudo o que tocasse. E o deus, brincalhão como todos os deuses, não titubeou em atender o monarca. Não apenas a comida, a bebida, as mulheres (e a filha) do desafortunado rei viraram ouro, privando-o de fome, de sede e de amor, mas o mundo parecia a Midas, de agora em diante, um só: ouro, que seja, mas, principalmente, um só.
A desgraça fictícia do rei lança sombras no nosso mundo, por direito, real, e a história de Midas só é fantasiosa em seus detalhes químicos (não é todo dia que vemos pessoas transformando suas filhas em ouro). Sofremos de um mal parecido, cada vez que tropeçamos em informações e sentimentos demasiado uniformes, repetidos, e, por isso, com brilho de incontestáveis.
O mundo monótono da informação massificada, mediado pelas empresas de comunicação e a serviço de interesses mais silenciosos, ganhou um aliado recente, embora mais arredio, com a explosão da internet e de suas filhas douradas, as redes sociais. Sim, a internet democratiza o espaço de conversas. E sim, ao contrário da tradicional mass media, há mais gente on-line com o direito de dizer, não só de ouvir. No entanto, observa-se um fenômeno igualmente reacionário, que tem sido explorado pelas corporações do mundo livre (entre elas, o oportunista braço da mídia), em que as pessoas veem-se magicamente felizes sentindo e opinando as mesmas coisas, reproduzindo convicções confortáveis. Tome, como péssimo exemplo, os preconceitos, os ódios à diferença, os julgamentos de costumes, que se alastram na rede como fogo em capim seco. Nesses casos, a “democratização do dizer” emburrece tanto ou mais que a velha atitude passiva do telespectador.

A vida acrítica nas redes tem elementos mais perversos que a ditadura da TV. Esta, bombardeando-nos com programas estúpidos e noticiários tendenciosos, ao menos invade só o momento da recepção. Como acontece com os livros (há livros tão ruins quanto a programação da TV), após ver, ouvir, ler, temos a oportunidade de debater com as outras pessoas. Esse é o momento da socialização, em que retramamos nossa cultura. Nas redes sociais, as opiniões são logo engolidas e cuspidas (é dizer: curtidas e compartilhadas) com pouca ou nenhuma mediação da conversa com gente real ou virtual.
Não sou pessimista em relação ao novo universo em rede, de que, aliás, participo com gosto. A lenda de Midas oferece uma saída quando Dionísio, cansado da brincadeira, conta ao rei que tudo pode voltar ao que era se ele se banhar nas águas de um certo rio. Quem sabe nossos deuses também se cansem de viver em um mundo só? Quem sabe a diversidade seja, daqui pra frente, recebida com a alegria que ela merece? Tudo é possível nessa nossa realidade.

Publicado em O Tempo, 25/10/2012

sábado, 8 de setembro de 2012

Belo Horizonte vai ser 10


Livro de Graça na Praça comemora 10 anos de cultura partilhada em BH

Beto Vianna

Iluminuras

Zé Mauro é um iluminado. Não como no filme do Kubrick, mas no sentido da história das culturas, dessa partezinha boa da história ocidental em que é bonito o saber, é bonita a educação, é bonita a literatura. E bonito seria se todo esse conhecimento partilhado fosse partilhado por muito mais gente.
Foi com essa ideia na cabeça que, em 2003, o professor José Mauro da Costa juntou uns trocados e mandou publicar Ouvindo estrelas, um ajuntado de poemas que o Zé costumava dizer na escola de sua infância. Distribuía os exemplares sem muita ciência - um aqui, outro ali, um esquecido no branco da praça, outro escorrega na bolsa da amiga - mas a ideia rendeu, pois no ano seguinte Zé Mauro e alguns amigos editavam Atrás da porta, já contemplando a interação do público com os autores, formato que faz, até hoje, a alegria anual dos domingos na praça. Desde 2005, escritores convidados escrevem de graça seus contos para a obra, que é publicada, distribuída, autografada e assuntada de graça, para a população, na praça da Liberdade. Nasce e cresce o Livro de Graça na Praça.  
Dali até aqui, umas mudanças, próprias do crescimento. Os autores já não bancam sozinhos o prelo, acudidos pela cavalaria dos parceiros (hoje, o Sesc-Senac, a Aletria, a Imprensa Oficial, a Academia Mineira de Letras e o hotel Liberty). Aos escritores convidados, somam-se, desde 2006, três ganhadores do concurso nacional promovido anualmente pelo Sesc-Senac. Ao todo, foram 150 mil volumes distribuídos em Belo Horizonte. Livros “adultos”, obras para a gurilândia e os cordéis, inclusive um em braile, para ser acariciado por um universo ainda maior de leitores.
Entre os quase 200 contistas, cronistas, poetas, cordelistas e outros anarquistas que já participaram ou participam do projeto, muito literato do alto-clero, como Affonso Romano de Sant´Anna, Frei Betto, Olavo Romano, Fernando Brant e Ângela Vaz Leão. Mas aqui você se arrisca a encontrar dezenas de velhos desconhecidos do grande público, além de novos escritores cheios de letras pra dar. A turma do cordel é afiadíssima, muitos da Academia dos Cordelistas do Crato, no Ceará, gente que há anos pendura sua literatura Brasil adentro.
Aniversariando 10 anos, o Livro de Graça na Praça rende homenagem à cidade natal, com o título Belo Horizonte, à sua missão carinhosa, com o infanto-juvenil Todo livro ama crianças (organizado por Ronaldo Simões Coelho), e a si mesmo, com o cordel Livro de Graça na Praça: 10 anos, de Josenir Lacerda.

Só prós no projeto?

Sempre há umas questões. Essa é uma iniciativa que pesa no lado certo da balança da educação? Acho que sim. Uma crítica comum (já ouvi muito) é que há um componente paternalista ou assistencialista nessa história de pura e simplesmente distribuir livro de graça. Outra (contraditória à primeira) diz que o público que frequenta a praça da Liberdade nem tão carente de letramento é assim. Ao lado desses dois poréns - legítimos, a meu ver - há a desconfiança de que o projeto não é, de fato, franciscano, que organizadores, autores e colaboradores estão ganhando umas verdinhas no negócio. Começando desse último ponto, minha opinião (não partilhada pelos organizadores), é que essas pessoas deveriam, sim, ser remuneradas por esse trabalho de valor. Muita coisa ruim (em todos os sentidos) é muito bem paga, como bem sabemos. E quanto ao próprio valor? Cumpre mesmo essa função socializante, democratizante, o afazer do Livro de Graça na Praça?

Livro de Graça e boa educação

Assistencialismo só é palavra feia quando não tem efeito libertador para quem assiste e é assistido. No caso do Livro de Graça na Praça, há um mundo de culturas redentoras alimentado pelo simples fato de escritores e leitores (mesmo os iletrados) reunirem-se num mesmo lugar, numa manhã de domingo, para se debruçarem em torno do objeto-livro. O que torna excludente a nossa educação é insistir (isso já leva uns 200 anos) na crença de que a maioria da população não “sabe português” e, em vez de prover os meios de solucionar esse duvidoso problema, penalizar quem “fala errado”, negando a validade de sua língua materna.
Devo dizer, como linguista, que língua não se aprende na escola, mas em casa e na rua. Pelo menos tem sido assim nos últimos 100 mil anos da humanidade. A função da escola, e de espaços como o Livro de Graça na Praça, é oferecer as condições de manipular (entender, produzir, criticar) esse universo de meios e mensagens que ultrapassa os recursos da língua materna, pois são formas linguajeiras produzidas com uma tecnologia de ponta, complicadíssima, chamada cultura letrada.
Rico nem precisa da escola. Ele já tem seus canais privados de letramento, na forma de livros, filmes, discos, roupas, aparelhos eletrônicos e amigos igualmente ricos com quem conversar. E ainda complementa sua vida letrada com cursinhos de judô ou balé (ou o que seja). Dizia Darcy Ribeiro, é para o zé povinho que devemos, urgente, ampliar as possibilidades de apropriação da cultura culta, se é que queremos (nem todos queremos) que ele faça mais e melhor do que só nos servir.
A crítica de que a praça da Liberdade é antro da elite empalidece quando prestamos atenção à função libertadora do projeto. Envolver-se no universo do livro e da literatura é ganho pra quem merece ganhar, e o Livro de Graça na Praça, promovendo esse espaço de conversação, atua menos como (perdoe a metáfora bélica) flecha acertando um único alvo que como arma biológica, espalhando doença gratuita população afora. Os efeitos devem, espero, ser devastadores.
Belo Horizonte pode deixar de ser a metrópole do automóvel, das autopistas e das pedras debaixo do viaduto, e se tornar uma grande roça letrada, lida e escrita por seus habitantes, celebrando alegre (e com esperança) os primeiros 10 anos de livros de graça na praça. Este ano a coisa acontece dia 9 de setembro, a partir das 9 da manhã, na praça da Liberdade. Como emenda o cordelista Edésio Batista, “Enfim a festa se faça/ Em praça cheia de gente/ Com livro como presente”.


Publicado no jornal O Cometa Itabirano, ago/2012

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Que p de língua sou eu?


Política e preconceito no país do português 


de Beto Vianna

“Há 800 anos, Gengis Cã encomendou aos povos submetidos uma escrita para a sua língua, contratou letrados e difundiu idiomas espalhados pela Rota da Seda, facilitando a administração do maior império em terras contínuas que o mundo já viu, e não, como costumamos dizer, “semeando o terror”. Os mongóis nos ensinaram que governar, mais que impor a própria língua, é beneficiar-se da comunicação com os povos em contato: reunir para reinar.”
O trecho acima é parte de um artigo que escrevi em 2009 para o jornal O Tempo, quando vivia na cidade iorubá de Ilê-Ifé, na Nigéria. Esse país, como tantos na África, volta e meia se enreda no debate sobre políticas que equacionem a (antiga) diversidade linguística e a (recente) unidade nacional, resultado dos processos, ambos perversos, de colonização e descolonização. Ali são 500 línguas, três delas com dezenas de milhões de falantes, e lá está o inglês como uma estaca oficial cravada no coração nigeriano, defendida por alguns como “língua da união” entre etnias feitas rivais.
Naquele texto, usei o grande Cã como contraponto ao imperialismo linguístico das potências modernas. Em particular, questionei a necessidade de uma “defesa” do português na economia linguística mundial, seja como língua estrangeira ou como língua oficial nos países da África e no Timor. Como nos ensinou Walter Rodney em Como a Europa subdesenvolveu a África, difundir a própria língua e cultura foi uma prática usual do neocolonialismo europeu, e a razão de ser de instituições como a Aliança Francesa e a Real Academia Espanhola. Quando o principal centro de difusão do português passa a ser o Brasil, uma ex-colônia, a promoção ultramarina da língua acaba exalando um cheirinho de incoerência histórica.
Mais produtiva que esse interesse chauvinista em difundir a língua pátria, a questão que devia ser colocada é: e que língua é essa? Ou, mais precisamente, a quantas anda a política linguística brasileira dentro das fronteiras do país?

Uma das dificuldades de levarmos essa questão adiante é a ideia, muito comum nos meios intelectuais, de que o Brasil é país de uma língua só. Tanto em termos da “cepa” da língua (o português) quanto sua utilização “correta”, entendido isso como as regras contidas em um manual de instruções, previamente codificado e ensinado na escola: o “português padrão”. É incrível como tantos escritores, artistas, jornalistas e publicitários, gente que deveria ser mais bem-informadas e bem-informantes, pregam (e a mídia míope divulga) uma uniformidade linguística totalmente fictícia. Veja que esse não é um fenômeno recente, de impaciência com a “esquerda desvairada”. Desde os anos 1900, século sacrossanto do nosso fervor nacionalista, os doutos e letrados reclamam que o brasileiro “corrompe” a língua, o brasileiro “fala errado”, o brasileiro “não sabe português”, e que uma expressão como “as casa amarela” (uma construção de plural impecável, pergunte-me como) “dói no ouvido”. É muita asnice para mentes tão brilhantes. Esses sábios deviam saber que, por definição, todo adulto de mente sã sabe falar - e muito bem - a própria língua, e ponto final. Mas a culpa não é só deles, coitados.
A culpa não é só deles, pois, à dificuldade gigante de se desmascarar o mito da Língua Única do Brasil - um imaginário poderoso, antigo e com aval oficial -, soma-se o outro lado perverso da moeda, que é justamente a ciência que estuda a linguagem: a linguística. No afã de garantir o reconhecimento de nossa disciplina no panteão das ciências de verdade, e em nome da guerra contra os abusos normativos da gramática, nós, linguistas, nos agarramos a uma abordagem descritivista da língua. Resignamo-nos com a crença de que a ciência nada faz além de descrever (no máximo, explicar) o “fenômeno da língua”, sem dar muita bola para o quebra-pau que acontece entre os falantes, justamente por causa de suas línguas! Essa lavação científica de mãos só ajuda a aprofundar o poço brasileiro entre os arraigados valores socioculturais da língua única, e as nossas bem amparadas concepções acadêmicas sobre a língua multiforme, dinâmica, variável.

Ao contrário dos antropólogos, que bem ou mal acabam participando das políticas públicas envolvendo os grupos que estudam, tem muito linguista que assiste de camarote as decisões políticas que afetam a vida dos seus falantes. Falo de modo geral: parte da linguística brasileira, em especial os pesquisadores de línguas indígenas, aproxima-se dessa caracterização que fiz do trabalho do antropólogo. Mesmo nesses casos, impera a opção preferencial pelos pobres trabalhos descritivos. Isso afasta o linguista de uma conversa mais abrangente e produtiva com o resto dos mortais, e limita sua participação em políticas públicas envolvendo os encontros entre povos e línguas. Afasta o linguista da briga por mudar o (mau) uso, o status e as funções das línguas brasileiras e de suas variantes, situação que tanto sofrimento causa a tanta gente.
Ao lado do “português correto”, a história de que o português é língua mui natural de todos nós desde a colonização, é um senhor mito. O uso exclusivo do português foi baixado por decreto no século 18, por Marquês de Pombal, contra uma realidade de várias línguas - em especial a “língua geral”, de base tupi -, faladas e transfaladas por índios, escravos, estrangeiros e pelos próprios portugueses e seus milhões de rebentos caboclinhos. O Brasil sempre foi e continua sendo um país plurilíngue (Portugal também é, aliás), com situações não raro conflituosas de contato linguístico. Isso precisa ser reconhecido, ser encarado como um alvo de políticas públicas e merecer a participação mais efetiva dos linguistas nos esforços de pesquisa e elaboração de políticas e planejamento linguísticos que desemudeçam os brasileiros.    


Voltando à Nigéria e seu inglês oficial, o engraçado (se há graça nisso), é que a maioria da população não fala inglês, ou, melhor dizendo, essa maioria pouco letrada fala (há séculos) um outro-inglês nativo, que causa calafrios à classe culta daquele país. Notou alguma semelhança com o Brasil? Pois é.


Publicado no jornal O Cometa Itabirano, maio/2012

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Gente bonita: a língua culta do bairro nobre


Pedro Perini-Santos e Beto Vianna

Reclamar das limitações impostas pelo policiamento linguístico virou o esporte preferido de alguns fazedores de opinião congenitamente mal-humorados. Como não queremos cercear a liberdade de ninguém de ofender os demais, vamos tratar de um assunto bem mais afirmativo, que é a linguagem do apreço, do enaltecimento.
As expressões que compõe o título deste artigo não foram expurgadas pelo politicamente correto. São termos corriqueiros que aparecem em anúncios publicitários, em matérias de divulgação de eventos e até no noticiário. Chamadas como “Megabalada na boate O Alpendre: só vem gente bonita” são ilustradas por fotos de pessoas jovens, brancas, bem-tratadas e com cabelos lisos. O recado é claro: bonito é quem é jovem, forte, branco e rico.
Em estilo semelhante, as imobiliárias e as colunas sociais categorizam os bairros mais ricos da zona sul da cidade como “bairros nobres”, ou seja, há bairros que acolhem moradores que são vistos e tidos como superiores aos demais habitantes da capital, pois, se há pessoas nobres, os demais, por extensão, são plebeus, certo? Compare esses termos com aquele outro, tão usado por nossos intelectuais sempre alertas ao bom uso da língua: “norma culta”. E quem não pratica a norma culta, é, por extensão, o quê?
Não é necessário haver controle na entrada de eventos de gente bonita ou no acesso aos bairros nobres, selecionando quem pode e quem não pode participar dos ambientes especiais. A vivência diária o faz. Por exemplo, para que negras e negros sejam plenamente aceitos, esses têm que ser ainda mais charmosos e ricos que a média dos usuários habituais dos setores vips da sociedade. Devem ser motivos de um sonoro “uau, que corpo!”, sendo essa frase a expressão prosódica do desejo por contato erótico a ser relatado orgulhosa e sutilmente aos amigos e amigas, e acompanhado por generosas doses de um especial 12 anos qualquer.
Quem está por cima acha ótimo continuar nesse lugar. Palavras como "esnobe", supostamente críticas daqueles que têm ou mostram ter bala na agulha, têm origem na falta de paciência com a mobilidade social. Dizem as más línguas que vem da  abreviação inglesa s.nob (sem nobreza), título carimbado nos alunos de origem plebeia que receberam a graça de frequentar as sangueazuladas escolas britânicas.
O mesmo vale para o convívio nos bairros da elite, outra expressãozinha danada de complicada. Nesse caso, a linha de corte é o rendimento e a aparente sofisticação comportamental. Ali os restaurantes têm nomes italianos e franceses, com cardápios redigidos nessas línguas, generosamente evitando que consumidores plebeus, incapazes de pronunciar corretamente o costumaz pedido de um Pinot Noir, 95, com bouquet épicée, adentrem ao recinto e paguem mico (para os outros).
É ótimo ter liberdade de escolha no uso da língua. Mas não custa nada abandonarmos as escolhas que ferem as outras pessoas. Isso, sim, é falar bonito.

Publicado em O Tempo, 12/05/12

sexta-feira, 16 de março de 2012

O jardim das delícias antropofágicas

A linguagem e a biologia da Quarta-feira de Cinzas

Beto Vianna

O Éden

Tem gente de mente colonizada, como eu, que acha Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel os melhores artistas visuais do planeta. Há mais de 500 anos, Bosch pintou um conjunto de três telas - um “tríptico”, na gíria especializada - de nome “O jardim das delícias terrenas”.  Como todos os trípticos, esse funciona assim: as telas laterais são abas que se fecham sobre a pintura central. Do lado de fora (nas costas das abas), Bosch pintou o mundo no terceiro dia da criação, com a vida vegetal desabrochando antes do advento da humanidade. Abertas as abas, saltam as delícias do jardim terreno de Bosch.
A tela da esquerda traz Deus, em pessoa, abençoando Eva antes de entregá-la a Adão. É uma cena de casamento, o casamento original, em um cenário de natureza intacta, a não ser por uma ou outra arquitetura biotecnológica, bem ao gosto de Bosch, e uma zoobotânica tão plausível quanto fantástica. Na tela da direita, pinta a confusão que resultou desse bendito casamento: as atividades (os prazeres e os negócios) de uma humanidade crescida e multiplicada tornam-se provações do inferno, um cenário gótico de Stephen King onde, da natureza original, só restam os corpos em agonia. Personagens vivos confundem-se com elementos de cena e, no fundo do palco, a cidade arde em chamas.
O painel central, maior, é o mais importante, posto que é central e maior. Essa tela deixou cinco séculos de críticos e historiadores de arte confusos, contorcendo-se para tirar significado de tanta perversão inocente, tanta beleza maldita, tanto pecado angelical. Num cenário psicodélico que mescla natureza e cultura (e interagindo com essa natureza e cultura), gente pelada de todas as cores entrega-se a toda classe de artes, especialmente a do amor. Aí, no desenho central, Bosch retratou o verdadeiro jardim humano: nem candidamente paradisíaco, como a cena da esquerda, nem lamentavelmente infernal, como a tela direitista. A imagem do meio é a mensagem.

A carne

Em 1559, o flamengo Pieter Bruegel pintou “A luta entre o Carnaval e a Quaresma”. Bruegel tem uma qualidade herdada de Bosch: quanto mais suas figuras retratam uma realidade corriqueira, mais o sonho brota da tela, mais afundamos em uma viagem alucinatória. Como em outros quadros seus, Bruegel pinta cenas do cotidiano da cidade, que, nesse caso, nos ajudam a desvendar o jardim central de Bosch. O Ocidente sempre foi berço de sonolentas dicotomias (a começar por autointitular-se Ocidente), e Bruegel, que não é bobo nem nada, pinta e borda duplicidades em seu quadro. A obra é uma explosão de dobros, de opostos, de espelhos. Pelo lado do Carnaval, ali estão os elementos mundanos do bêbado, do bar, da gula, da música, da máscara, da esbórnia e da carne. Da direita, vêm os oponentes (também mundanos, é claro): o clérigo, a igreja, a frugalidade, a devoção, a batina, a hóstia e o peixe, cerrando fileiras com a Quaresma. E os opostos, sendo opostos, não se repelem. Antes se entrelaçam e se confundem, como numa dessas cenas de batalha antiga, dirigidas por Mel Gibson.
Não posso deixar de pensar que o atual Carnaval de Belo Horizonte está repleto dos elementos contraditórios de um Carnaval que se preze, ainda que não tão explícitos quanto na andrógina folia de Bruegel. Alegre, popular, musicalmente cativante, a redescoberta festa de rua belorizontina está recheada da tradição carnavalesca de misturar, nas letras das marchinhas e nos gritos dos blocos, o louvor à frouxidão dos costumes e a denúncia à imoralidade política. Movimentos que surgiram da contestação política, como o Fora Lacerda e o Praia da Estação (este, já plenamente carnavalizado desde o início), deglutiram e foram deglutidos na apoteose do Carnaval da cidade, integrando-se ao delírio das máscaras e dos cortejos. Um mix de defesa política do espaço público e da diversidade comportamental que, por outro lado, não consegue se livrar de velhos ingredientes conservadores da classe média mineira.

O carrus navalis

No calor do Carnaval deste ano, li um artigo dizendo que a palavra “carnaval” passou a “significar o contrário do que significa”. Sugere que a etimologia do termo seria carnen laxare (sic), “deixar a carne”, pois, para o autor, o Carnaval está ligado ao ato de “abster-se de carne”. Bem o contrário, portanto, do desbunde que (segundo o autor) se vê no “carnaval de hoje”. Duvido que as palavras tenham um significado gravado a ferro e fogo em alguma pedra imemorial. E se podemos escolher, prefiro uma famosa etimologia popular, carne vale, que é o latim para “adeus à carne”. Muito apropriado, pois só bem nos despedimos de algo devorando fastidiosamente esse algo (a razão da despedida é celebrar a presença). Laxante, se houver algum, é a Quaresma, não o Carnaval.
A sacação etimológica de que mais gosto é carrus navalis. É possível que os gregos tenham sido os primeiros a se carnavalizar, com suas orgias bacantes, e tudo mais. Mas foram os romanos tardios que primeiro caíram, de fato, na folia. Essa plurirraça miscigenada de várias europas, ásias e áfricas é precursora dos latinos do Novo Mundo - nós -, como nos ensina Darcy Ribeiro. Precursores nossos na tristeza e na alegria, na paixão e na farra. Carrus navalis era o barco da deusa Ísis, uma carroça fantasiada de embarcação (ou seja, um carro alegórico), movida a álcool, amor e cantoria pelas ruas da antiga Roma. O entrudo tinha caráter religioso, a festa era uma forma de adoração, e atrás do Barco de Ísis só não ia quem já morrera.
Um devoto seguidor de Ísis foi o jovem imperador romano Calígula, que segundo o historiador Suetônio, era um tirano sanguinário e incestuoso. Mas Suetônio é o equivalente romano da imprensa golpista. Para o bem ou para o mal, Calígula entregava-se de alma e corpo às contradições de sua deusa africana, pairando entre o mundano e o divino. O imperador se fantasiava, segundo a ocasião, de suma autoridade ou rebelde anárquico, debochando da estrutura de poder e aliando-se ao povo contra a elite, em uma época em que Roma ainda não contava com o recurso populista do circo máximo. O filme “Calígula”, repleto de elementos carnais explícitos, soa mais boschiano que o relato moralista de Suetônio. Como na cena em que o imperador manda construir um imenso carrus navalis (a religião), onde as esposas dos senadores (a política) são oferecidas como prostitutas (o sexo). Puro Carnaval.

Quarta-feira

Vou sugerir, não como um esforço de interpretação, mas um truque pra me ajudar a dizer o que quero dizer, que o que une a ambígua tela central do jardim de Bosch, a mescla de opostos do quadro de Bruegel e a devoção mundana à deusa Ísis não é um tema específico, mas um dia específico, que se repete ano após ano em variadas (pois lunáticas) datas. Um dia que se repete desde que uma humanidade fundamentalmente erotizada quis, além disso (e, não, ao invés disso) ser pia: a Quarta-feira de Cinzas.
O processo civilizatório foi um jogo de opostos (irreconciliáveis, mas inextrincáveis) a nos condenar eternamente. Se isso é verdade na Europa de Bosch e Bruegel, mais ainda no Novo Mundo, em que o Carnaval transladado ganha a participação cada vez mais decisiva da indiada e do criouléu mal-saídos do cativeiro, e a folia sempre motivou a desconfiança e a tentativa de manipulação dos festejos pelos donos da terra. Por outro lado, o pendor religioso do populacho latino-americano tem sua melhor performance na Páscoa, quando as missas e procissões reúnem essa mesma massa pobre e marginal (paixão e movimento são uma coisa só). Se a Quarta-feira de Cinzas dá início à observância devocional, também é, para muitos, dia de Carnaval. Talvez o mais importante, por ser o último. A despedida, o carne vale.
Folia e devoção sobre-humana são protestos momentâneos diante de uma realidade opressora, desumanizadora. E a Quarta-feira de Cinzas é o momento desses momentos. É, mais que isso, a data (móvel, vá lá) oficial de se viver esses dois momentos de mãos dadas, sem muita vergonha, ou, pelo menos, atrás da oportuna máscara ou da religiosa abstinência (não comer o que usualmente se come é um jeito de se fantasiar). Na Quarta-feira, e só na Quarta-feira, o amor carnal e o amor devoto têm a mesma motivação política. Encontram-se, beijam-se. É a tela central do jardim antropofágico de Bosch, seja na Belo Horizonte de hoje ou na Roma eterna. 

Publicado no jornal O Cometa Itabirano, março/2012