Voo
Bicho fala? Bom, quando o menino Santos-Dumont brincava de adivinhas com a molecada da fazenda, respondia à pegadinha “homem voa?” com um convicto “voa”. Numa versão dessa lenda (numa de suas verdades), Albertinho obstinava-se em defesa da faculdade voadora humana por conta de seu fascínio por Júlio Verne. Sua imaginação lhe dizia que era irrelevante gente não voar com as próprias pernas, pois fazia uso das máquinas maravilhosas inventadas ou por inventar (na cabeça de Júlio ou na prancheta do próprio Alberto).
Se você desconfia que isso não passa de um truque da linguagem, que há, sim, uma grande diferença entre o voar de um pássaro e um voar em um avião, convido-o a olhar essa relação de perto. Sim, uma relação, pois se observamos um animal voando, um pássaro, um morcego, um inseto – ou um super-herói – não é bem a imagem do bicho que nos dá certeza que tem voo na jogada. É o encontro entre o bicho e o espaço à sua volta. Uma avestruz batendo as asas não está voando, e o Super-Homem, naquela pose de campeão olímpico, definitivamente está. Alguns insetos são tão pequenos (com avantajada porção de área em relação ao volume), que, mesmo sem asas, têm mais dificuldade em se manter grudados à superfície terrestre do que, naturalmente, sem esforço, voar. Um rinoceronte, por outro lado, precisaria de uma asa tão impressionante para se elevar do solo que só o peso do maquinário (músculos, ossos, pele...) necessário para tanta asa já condenaria o voo do bicho. Dumbo é má ficção científica (traduzindo em termos literários, Walt Disney é um contador de histórias pior que Júlio Verne).
Quando um morcego bate as asas, ou um inseto flutua, ou um urubu plana, cria-se uma relação específica entre o organismo e a configuração do entorno (a dinâmica da aerodinâmica, se quiser), tendo, como resultado, nós observarmos e descrevermos o fenômeno do voo. Do mesmo jeito, Santos-Dumont sentado em seu Demoiselle - o primeiro avião da história -, mudava a própria configuração (a própria biologia), mudando a relação entre seu corpo e o ambiente. Quem viu petit Santô pilotando sua engenhoca viu, e descreveu, o brasileiro... voando. Tanto podemos dizer que, pela engenharia, Santos-Dumont mudou a si mesmo (transformando-se num homem-avião) quanto mudou o entorno (transformando o mundo num mundo-aéreo). No final das contas, o que vemos e descrevemos é uma relação, e essa relação é o voo. Se acreditarmos nisso, podemos também acreditar que linguagem também é uma relação. Assim como o voo. Ou a dança.
Estou dizendo isso tudo por um motivo pessoal (já pedindo sinceras desculpas por enfadar a leitora ou a leitor com meus problemas). É que em toda a minha vida acadêmica, de curioso pelos processos de interação (linguagem?) não-humanos, sempre me deparei com uma enorme barreira cultural no meio científico. Desde o nascimento da ciência moderna, desde René Descartes, os estudiosos do conhecimento, da mente e da linguagem - o que hoje chamamos “cognição” - riem-se às gargalhadas da inocência popular, que vê, em todos os outros seres do planeta, trejeitos ou sentimentos só permissíveis ao humano. Os cientistas inventaram até um nome pra isso: antropomorfismo. Só os poetas podem dizer que a roseira está triste, que o mar está bravo, que o gatinho reclama do dono. Ser acusado de antropomorfismo é o insulto maior a um cientista que se mete a estudar as relações entre os organismos e o ambiente, e as relações dos organismos entre si. Essa desconfiança dos cientistas a tudo que cheire a antropomorfismo assume dimensões épicas quando o assunto é linguagem. Bicho, cientificamente falando, não fala.
Linguagem
Mesmo se nós, mortais, resolvermos não discutir com os sábios cientistas, e aceitarmos que a linguagem é uma capacidade exclusiva do humano, continuamos a esbarrar numa série de outras interrogações. Nunca houve muito consenso sobre questões chave acerca da linguagem. Por exemplo, como é que quase qualquer criança - à exceção daquelas com graves distúrbios neurológicos, ou trágicas experiências emocionais - aprende tão rápido a conversar tão bem, a usar tantas difíceis regras de gramática e um vasto vocabulário, ainda que nunca tenha aprendido isso formalmente? Por que xingamos de mal educados aqueles que dizem “nós vai na festa”, sendo que nenhum brasileiro - escolarizado ou não - diz “eu vai na festa”, ou “na vai festa nós”? Outra: como pode a palavra - essa unidade da língua, tão cheia de coisas e de deuses - mudar assim tão descabidamente de uso, de significado, de forma, de uma língua pra outra, de situação pra outra, de pessoa pra outra? A linguagem é inata ou aprendida? É uma dádiva dos deuses ou fruto do acaso? É imposta ou democrática? Esses são debates antigos, fundadores do que hoje é a linguística - a ciência da linguagem.
Desconfio que uma das causas de tanto nhenhenhém (do tupi: fala tresloucada), é que há uma cultura em que os cientistas, julgando que isso é ser cientista, insistem em espremer qualquer fenômeno dentro de uma categoria natural bem definida. A linguagem precisou de um lugar entre as coisas do mundo e, tradicionalmente, o lugar que lhe coube foi a mente humana. Segundo essa maneira de encarar a linguagem, quando falamos (ou ouvimos), transmitimos coisas-linguagem uns para os outros. Como outros seres não têm coisas-linguagem em suas mentes (se é que têm mentes), nada feito, e tanto pior para a inocência, ou sabedoria, popular.
E se, ao invés disso, acreditarmos que a linguagem é um fenômeno relacional? E se aceitarmos que a linguagem não só é socialmente construída, como, pra piorar, é impossível lançarmos mão de outro meio, que não a própria linguagem, para falarmos da linguagem? Nossa tradição investigativa não gosta de deixar “desamarrado” um objeto de investigação. E amarrado significa que o estudioso sente-se mais seguro quando está num lugar independente do objeto que estuda (a famosa “objetividade científica”). Acontece que a linguagem tem a alucinógena propriedade de deixar tudo diferente (nós, inclusive) quando muda de lugar. A linguagem é quântica! Tanto pior para a sabedoria, ou inocência, científica.
Quanto ao usuário da linguagem, não deve ter passado despercebido que este precisa ser, se não um humano, ao menos um ser vivo, e isso implica que a sua biologia (o seu modo de vida) é um dado crucial para falarmos de linguagem.
No voo, vimos (se é que você acreditou no que eu disse sobre o voo) que não é a estrutura biológica em si que determina a nossa observação e descrição do fenômeno do voo. É preciso observar o comportamento do avoante, ou seja, a relação que ele mantém com o entorno, e só então dizer, como disse Santos-Dumont, “voa”. E o que acontece quando o entorno do ser vivo, o meio com o qual ele interage, é outro ser vivo? Se observarmos uma dançarina solando, podemos dizer: “dança”. Mas se há um par bailando, cria-se um outro nível de interação em que, para nós que estamos observando, tudo o que acontece em um parceiro tem correspondência com o que ocorre no outro parceiro. Dá-se a esse fenômeno o nome de “coontogenia”: um processo do viver em que um organismo (um morcego, uma rosa, um ser humano) muda sua estrutura em correspondência com as mudanças estruturais de outro organismo (outro morcego, outra rosa, outro ser humano).
Se o baile perdura no tempo, os bailadores movem-se em sintonia, e se entendem mutuamente, atentos um ao outro no viver, e eu, ao menos, chamo a isso linguagem.
Se o baile perdura no tempo, os bailadores movem-se em sintonia, e se entendem mutuamente, atentos um ao outro no viver, e eu, ao menos, chamo a isso linguagem.
Publicado no Cometa Itabirano - dezembro de 2011