segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

No espaço relacional, gente voa e bicho fala

Beto Vianna

Voo

Bicho fala? Bom, quando o menino Santos-Dumont brincava de adivinhas com a molecada da fazenda, respondia à pegadinha “homem voa?” com um convicto “voa”. Numa versão dessa lenda (numa de suas verdades), Albertinho obstinava-se em defesa da faculdade voadora humana por conta de seu fascínio por Júlio Verne. Sua imaginação lhe dizia que era irrelevante gente não voar com as próprias pernas, pois fazia uso das máquinas maravilhosas inventadas ou por inventar (na cabeça de Júlio ou na prancheta do próprio Alberto).
Se você desconfia que isso não passa de um truque da linguagem, que há, sim, uma grande diferença entre o voar de um pássaro e um voar em um avião, convido-o a olhar essa relação de perto. Sim, uma relação, pois se observamos um animal voando, um pássaro, um morcego, um inseto – ou um super-herói – não é bem a imagem do bicho que nos dá certeza que tem voo na jogada. É o encontro entre o bicho e o espaço à sua volta. Uma avestruz batendo as asas não está voando, e o Super-Homem, naquela pose de campeão olímpico, definitivamente está. Alguns insetos são tão pequenos (com avantajada porção de área em relação ao volume), que, mesmo sem asas, têm mais dificuldade em se manter grudados à superfície terrestre do que, naturalmente, sem esforço, voar. Um rinoceronte, por outro lado, precisaria de uma asa tão impressionante para se elevar do solo que só o peso do maquinário (músculos, ossos, pele...) necessário para tanta asa já condenaria o voo do bicho. Dumbo é má ficção científica (traduzindo em termos literários, Walt Disney é um contador de histórias pior que Júlio Verne).
Quando um morcego bate as asas, ou um inseto flutua, ou um urubu plana, cria-se uma relação específica entre o organismo e a configuração do entorno (a dinâmica da aerodinâmica, se quiser), tendo, como resultado, nós observarmos e descrevermos o fenômeno do voo. Do mesmo jeito, Santos-Dumont sentado em seu Demoiselle - o primeiro avião da história -, mudava a própria configuração (a própria biologia), mudando a relação entre seu corpo e o ambiente. Quem viu petit Santô pilotando sua engenhoca viu, e descreveu, o brasileiro... voando. Tanto podemos dizer que, pela engenharia, Santos-Dumont mudou a si mesmo (transformando-se num homem-avião) quanto mudou o entorno (transformando o mundo num mundo-aéreo). No final das contas, o que vemos e descrevemos é uma relação, e essa relação é o voo. Se acreditarmos nisso, podemos também acreditar que linguagem também é uma relação. Assim como o voo. Ou a dança.
Estou dizendo isso tudo por um motivo pessoal (já pedindo sinceras desculpas por enfadar a leitora ou a leitor com meus problemas). É que em toda a minha vida acadêmica, de curioso pelos processos de interação (linguagem?) não-humanos, sempre me deparei com uma enorme barreira cultural no meio científico. Desde o nascimento da ciência moderna, desde René Descartes, os estudiosos do conhecimento, da mente e da linguagem - o que hoje chamamos “cognição” - riem-se às gargalhadas da inocência popular, que vê, em todos os outros seres do planeta, trejeitos ou sentimentos só permissíveis ao humano. Os cientistas inventaram até um nome pra isso: antropomorfismo. Só os poetas podem dizer que a roseira está triste, que o mar está bravo, que o gatinho reclama do dono. Ser acusado de antropomorfismo é o insulto maior a um cientista que se mete a estudar as relações entre os organismos e o ambiente, e as relações dos organismos entre si. Essa desconfiança dos cientistas a tudo que cheire a antropomorfismo assume dimensões épicas quando o assunto é linguagem. Bicho, cientificamente falando, não fala.

Linguagem

Mesmo se nós, mortais, resolvermos não discutir com os sábios cientistas, e aceitarmos que a linguagem é uma capacidade exclusiva do humano, continuamos a esbarrar numa série de outras interrogações. Nunca houve muito consenso sobre questões chave acerca da linguagem. Por exemplo, como é que quase qualquer criança - à exceção daquelas com graves distúrbios neurológicos, ou trágicas experiências emocionais - aprende tão rápido a conversar tão bem, a usar tantas difíceis regras de gramática e um vasto vocabulário, ainda que nunca tenha aprendido isso formalmente? Por que xingamos de mal educados aqueles que dizem “nós vai na festa”, sendo que nenhum brasileiro - escolarizado ou não - diz “eu vai na festa”, ou “na vai festa nós”? Outra: como pode a palavra - essa unidade da língua, tão cheia de coisas e de deuses - mudar assim tão descabidamente de uso, de significado, de forma, de uma língua pra outra, de situação pra outra, de pessoa pra outra? A linguagem é inata ou aprendida? É uma dádiva dos deuses ou fruto do acaso? É imposta ou democrática? Esses são debates antigos, fundadores do que hoje é a linguística - a ciência da linguagem.
Desconfio que uma das causas de tanto nhenhenhém (do tupi: fala tresloucada), é que há uma cultura em que os cientistas, julgando que isso é ser cientista, insistem em espremer qualquer fenômeno dentro de uma categoria natural bem definida. A linguagem precisou de um lugar entre as coisas do mundo e, tradicionalmente, o lugar que lhe coube foi a mente humana. Segundo essa maneira de encarar a linguagem, quando falamos (ou ouvimos), transmitimos coisas-linguagem uns para os outros. Como outros seres não têm coisas-linguagem em suas mentes (se é que têm mentes), nada feito, e tanto pior para a inocência, ou sabedoria, popular.
E se, ao invés disso, acreditarmos que a linguagem é um fenômeno relacional? E se aceitarmos que a linguagem não só é socialmente construída, como, pra piorar, é impossível lançarmos mão de outro meio, que não a própria linguagem, para falarmos da linguagem? Nossa tradição investigativa não gosta de deixar “desamarrado” um objeto de investigação. E amarrado significa que o estudioso sente-se mais seguro quando está num lugar independente do objeto que estuda (a famosa “objetividade científica”). Acontece que a linguagem tem a alucinógena propriedade de deixar tudo diferente (nós, inclusive) quando muda de lugar. A linguagem é quântica! Tanto pior para a sabedoria, ou inocência, científica.
Quanto ao usuário da linguagem, não deve ter passado despercebido que este precisa ser, se não um humano, ao menos um ser vivo, e isso implica que a sua biologia (o seu modo de vida) é um dado crucial para falarmos de linguagem.
No voo, vimos (se é que você acreditou no que eu disse sobre o voo) que não é a estrutura biológica em si que determina a nossa observação e descrição do fenômeno do voo. É preciso observar o comportamento do avoante, ou seja, a relação que ele mantém com o entorno, e só então dizer, como disse Santos-Dumont, “voa”. E o que acontece quando o entorno do ser vivo, o meio com o qual ele interage, é outro ser vivo? Se observarmos uma dançarina solando, podemos dizer: “dança”. Mas se há um par bailando, cria-se um outro nível de interação em que, para nós que estamos observando, tudo o que acontece em um parceiro tem correspondência com o que ocorre no outro parceiro. Dá-se a esse fenômeno o nome de “coontogenia”: um processo do viver em que um organismo (um morcego, uma rosa, um ser humano) muda sua estrutura em correspondência com as mudanças estruturais de outro organismo (outro morcego, outra rosa, outro ser humano). 
Se o baile perdura no tempo, os bailadores movem-se em sintonia, e se entendem mutuamente, atentos um ao outro no viver, e eu, ao menos, chamo a isso linguagem.

Publicado no Cometa Itabirano - dezembro de 2011

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O que tem de Brasileira a Academia de Letras?



 Beto Vianna e Pedro Perini-Santos

Em 1990, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe assinam o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Em 2008, decreta-se que o acordo passe a vigorar a partir de 2009; e sua efetivação, como prática escolar e editorial, ocorre em 2010. Foram 20 anos de amadurecimento de uma mudança polêmica. Guardiã do bem escrever, a Academia Brasileira de Letras ratificou e instrumentalizou a nova ortografia através do VOLP, o vocabulário ortográfico da língua portuguesa.
O bom de escrever um artigo a quatro mãos é que se pode discordar dentro do texto, até o ponto da contradição. Somos aqui dois linguistas, e o acordo ortográfico está longe de merecer unanimidade. Se eu (Beto) engulo o acordo pelas benesses de uma padronização dos livros didáticos impressos no Brasil e em Portugal, para países que importam esse material, como os africanos e o Timor, eu (Pedro) tenho minhas dúvidas sobre tamanho esforço numa empreitada que mais serve aos interesses de editoras que das populações às voltas com a escrita do português. Para não falar de umas desnecessidades introduzidas pelo acordo, como a queda do acento diferencial (ponto em que, aliás, eu e eu comungamos).
O que estamos de acordo, sobre o acordo, é que isso nada tem a ver com “ataque à língua nacional” (para os detratores do acordo) ou “resgate da identidade lusófona” (para seus defensores). A “Língua Portuguesa” como símbolo transnacional, identidade de povos a ser preservada, imortalizada e, quiçá?, embalsamada a ferro e fogo numa pedra imemorial, é um inútil malabarismo retórico para quem, como nós, se debruça sobre o fenômeno vivo, dinâmico e relacional a que chamamos língua. Além do mais, ortografia não é língua, mas uma técnica (que pode ou não ser aprendida pelo usuário da língua) aplicada ao registo escrito, tomando como modelo uma ou mais variantes da língua. Mudem lá a tal ortografia, e aqui em Minas continuaremos a dizer “djizê”, e, em Lisboa, “dzâr”.
No que eu e eu estamos de pleníssimo acordo é sobre como a Academia Brasileira de Letras erra feio no seu entendimento do que é e do que não é importante quando o assunto é língua. Reza em seu estatuto, que a ABL tem “por fim a cultura da língua e da literatura nacional”. Ou seja, para a ABL, há uma única língua e literatura no país. Como na imagem medieval da donzela casta defendida pelo cavaleiro (em que é a castidade, e não a donzela, o objeto de tanto cuidado masculino) a Academia mostra-se excessivamente ciosa de um modelo engessado de língua, ajudando a marginalizar usuários reais e diversos das línguas brasileiras, variantes ou não do português.
A ira contra o livro didático Para uma vida melhor é exemplar da postura da Academia. Na esteira de dúzias de intelectuais pelos jornalões afora, os imortais meteram a ripa no livro, com o argumento nocivo (dada a auto-investida autoridade da ABL) para milhões de brasileiros, de que a única e boa língua portuguesa é a prescrita na norma padrão. Como o que é ruim para o Brasil é ruim para Minas, nossos acadêmicos estaduais copiaram e colaram o ataque: “A apologia do erro; “nós vai” ou “os livro”, não levará o país e sua juventude a ascender socialmente com oportunidades profissionais, introduzindo-os no vasto universo cultural”, diz o secretário geral da AML. Não é curiosa, secretário, a coincidência entre décadas de preconceito contra os “maus falantes” e a pobre situação em que nos encontramos hoje? Perdoai os imortais, Senhor, eles não sabem o que falam. O combate aos estrangeirismos é outro lado dessa moeda podre. Em recente artigo no jornal O Tempo, um jurista vaticina que a “ameaça de colonização começa com a usurpação da língua. A história mostra que Roma tendeu à decadência quando seu povo desprezou o latim puro, acolhendo o castrense.” Segue exortando a ABL, sediada no Petit Trianon, no Rio, a defender a pureza do idioma, sonhando haver um ou dois vocábulos do português sem nascença em outra língua.
Tem coisa mais útil a ser feita por uma Academia, Brasileira, e de Letras.
A diversidade linguística e cultural do país merece mais cuidado, e um deles é parar de falar que no Brasil só há uma língua. Muitas das línguas faladas no Brasil estão morrendo, e isso não é choramingo piegas, mas uma ameaça cotidiana às pessoas, com consequências reais de discriminação escolar, social, médica e racial. Hoje, fala-se em racialização da linguagem, pois se associam, ao uso de línguas periféricas, julgamentos de valor moral, comportamental e estético. Mesmo no caso do português, é urgente mudar nossa atitude política. Tradicionais menções ao falar “errado”, “feio”, que “dói aos ouvidos” ignoram o fato de que as línguas são (bem) aprendidas na família e na comunidade, não nos bancos escolares (ao contrário da escrita e da norma padrão), ajudando a manter a maioria da população no seu devido lugar de baixo. Se nós, citadinos, não passamos pelo constrangimento de não nos fazermos entender falando o português brasileiro, é porque outras línguas permanecem escondidas, encabuladas e desconsideradas por instuições de referência. Como a ABL.
Distinto é o caminho seguido por nossa prima Acalan, a African Academy of Languages, empenhada no reconhecimento das línguas africanas, postura política e educacional de inclusão de grupos sociais e étnicos isolados por não serem habilitados na língua oficial de seus países. Dos 20 países de maior diversidade linguística, 19 são africanos, com quase metade das 6.000 línguas do mundo, altos índices de pobreza e populações que em sua maioria não falam a língua oficial, milhões de pessoas que precisam estudar, ler, escrever e negociar usando uma língua estranha. No Brasil, são 200 línguas, a maior parte pouco faladas e ainda menos escritas. Isso ocorre com as línguas indígenas e nas comunidades afrodescendentes, européias e asiáticas que compõem nossa diversidade cultural e linguística. Quando uma língua morre, morre muita coisa junto: receitas farmacológicas, relatos históricos, códigos de conduta, taxonomias naturais, tradições alimentares, poesia, música, o escambau. Morte lenta e sofrida na carne por quem vive e participa da língua.
Ou bem se muda o nome para Academia do Português Padrão, ou muda o foco da instituição. Se for Brasileira a Academia, que se preocupem mais os acadêmicos com as línguas de solo pátrio. Se isso for pedir muito, que se ocupem ao menos com os destinos dos seus falantes. Nós, brasileiros, agradeceríamos eternamente. 

Publicado no jornal O Cometa Itabirano, agosto/2011

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Para uma língua melhor

Pedro Perini-Santos e Beto Vianna


Como linguistas por formação e ofício, sentimo-nos no dever de comentar sobre os alardeados erros no livro de português que o MEC avalizou. Vamos explicar de forma simples para que o Clóvis Rossi, o Merval Pereira, o Arnaldo Jabor, a Viviane Mosé, o Milton Jung, o Alexandre Garcia, o Carlos Monforte, o Reinaldo Azevedo e o Cristovam Buarque entendam. O que eles divulgaram em seus espaços midiáticos teve muita repercussão. Sobre os ditos erros do livro “Para uma Vida Melhor”, o que eles propuseram está errado, pelos seguintes motivos:

O livro tematiza junto a alunos do programa Educação para Jovens e Adultos algo que acontece em todos os países: as pessoas são julgadas pelo jeito que falam. Isso se chama preconceito linguístico e tem consequências graves. Se sentem vítimas de preconceito linguístico, muitas pessoas deixam a escola, se esquivam de consultas médicas, abandonam reivindicações trabalhistas e não conversam com os filhos e com os colegas de trabalho. Quando nos sentimos constrangidos pela fala, pelo corpo ou pela forma de pentear o cabelo que não está no padrão extremamente rígido de nossas relações, nos calamos e sofremos com isso.

Não existe “norma culta”; isso é um erro conceitual grave e difundido como se fosse aceito pelos linguistas. Usar a expressão “norma culta” é tão infeliz quanto falar que existem “bairros nobres”, porque se supõe a existência do oposto, e a esse oposto, atribuem-se valores negativos.

O que a linguística fala das línguas é o seguinte: nada mais sendo variável - um problema neurológico ou problemas emocionais extremos - todo jovem e adulto aprende a variante linguística de sua comunidade e de sua família. Esse é um fato linguístico; nenhuma variante linguística é errada. E mais: a escrita não é a língua; é um sistema normatizado de codificação que pode abarcar uma ou mais variantes de uma língua. A escrita sempre difere da língua falada nos mais variados aspectos, inclusive da variante padrão.

E o que a linguística fala da escola é: a escola deve ensinar aos alunos o uso de um padrão normativo nacional, cuja referência é o uso linguístico universitário urbano. Talvez haja divergência quanto à escolha de seu caráter urbano, mas não há a menor possibilidade de um linguista sensato falar que erros de concordância nominal (como “os bicho”) ou verbo-nominal (como “acabou ontem as provas”) sejam ataques à gramática da língua portuguesa do Brasil; isso são ocorrências linguísticas que fazem parte do nosso uso corriqueiro.

O Brasil pratica preconceito linguístico há tanto tempo que achamos isso normal, e o resultado educacional aí está. Crianças que aprendem que sua família e seus amigos “falam errado”, o que gera problemas emocionais para a vida toda. Se não for má-fé, é pelo menos curioso ver tanta gente culta defender a manutenção do atraso para grande parte da população.

Por que falar dos “erros” no material didático? Considerar a fala espontânea, as variações regionais e pessoais é o melhor caminho para amadurecer o uso do texto escrito e do texto oral. Em geral, as pessoas falam e se expressam muito bem. Os desafios escolares são ajudar os alunos aprenderem a utilizar a variante padrão nos contextos adequados, adequar o texto oral à forma escrita, aprender a interpretar e argumentar a partir da leitura de textos diversos e fazer amadurecer nos alunos a consciência de que a gente deve se expressar do jeito apropriado à situação comunicativa que se vive.

Manifestações gramaticais prescritivas, como as que ocorreram nos meios de comunicação, geram agressividade, mal-entendidos e aumentam a arrogância com a qual tratamos as pessoas que de alguma forma desviam do modelo social padrão. No caso específico do livro, uma simples pitada de diferença no uso da fala citada no livro justificou uma violência verbal contra o livro de dimensões histéricas.

Finalmente, só se pode falar sobre aquilo que conhece e que se entende. Os jornalistas e o engenheiro que lemos, ouvimos e nomeamos aqui não entendem bulhufas de linguística. Eles erram na terminologia técnica; erram na interpretação do texto do livro; não conhecem a literatura científica; distorcem informações e não têm formação apropriada para falar sobre o tema.

O engenheiro e os jornalistas citados neste artigo deveriam pensar um pouco no que falaram (ou antes de falar), porque as consequências de sua fala são graves. Muita gente acredita nesses formadores de opinião, e o preconceito linguístico gera sofrimento e atrapalha a educação. Além de errada, a opinião por eles divulgada é nociva.

publicado no jornal Hoje em Dia, 09/06/11

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

III Seminário Ciência e Cognição


Tema: Novas Fronteiras Cognitivas
Rio, 16 a 18 de março de 2011

O III Seminário Ciências e Cognição: Novas Fronteiras Cognitivas volta-se para a promoção da articulação de ideias, experiências e conhecimentos entre os professores, pesquisadores, acadêmicos e profissionais das áreas de educação e neurociências. Com este propósito, o NuDCEN (Núcleo de Divulgação Científica e Ensino de Neurociências), da UFRJ, e a revista científica Ciências e Cognição, da Organização Ciências e Cognição, organizam e apresentam o evento. Local: Casa da Ciência - R. Lauro Müller, 3, Botafogo, Rio de Janeiro - RJ

mais informações no site do III SCC

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Por causa da mulher

Pedro Perini-Santos e Beto Vianna


No seu discurso de posse, Dilma Rousseff referiu-se ao cargo que assumia usando aquele termo que vem dando pano pra manga: “Venho para abrir portas para que muitas outras mulheres também possam, no futuro, ser presidenta.”. E a pergunta surge e ressurge: é certo ou errado dizer presidenta? Nossa resposta é: está certo e argumento não falta.

Primeiro, todos entenderam. Não houve ambiguidade, desinformação, incorência ou impropriedade no uso do termo. Seria incoerente se ela dissesse que vai abrir as portas para que outras mulheres possam ser jogadoras de futebol, ou fechar as portas para outras mulheres que almejam a presidência.

Segundo argumento: não é a língua que muda, mas são as pessoas que mudam a língua. Mudanças ocorrem na medida do uso. E a entrada de novas palavras em uma língua pode ser bastante rápida. Não devem ter mais que 30 anos as expressões brasileiras deletar, x-frango e beijódromo, e elas funcionam muito bem. Mudanças nas marcações de gênero são mais lentas. Estima-se que a substituição do sistema masculino/feminino/neutro do latim, para o sistema masculino/feminino do português careceu de pelo menos dez gerações para se efetivar. E presidenta não é palavra nova nem um novo gênero: é palavra existente usada em gênero existente. O que é novo é o uso do gênero feminino nessa palavra em particular.

O terceiro argumento diz respeito à educação. Os veículos de comunicação têm, em geral, a necessidade de padronizar o uso de itens e formas gramaticais. Mas a língua tem outros usos. Certos comentaristas de gramática têm uma postura muito agressiva em relação às mudanças na língua. Isso não é nada bom. Resulta em um sentimento de baixa autoestima linguistica, apoiado no uso de gramáticas escolares normativas, tecnicamente falhas, dificultando as dinâmicas escolares.

Outro argumento: o uso de presidenta não vai esculhambar o barraco. Não vamos passar a falar eleganta nem estudanta. Faz sentido dizer presidenta como tem sentido dizer médica ou sargenta, pois botar a marca do feminino na profissão é usual quando mulheres passam a exercê-la. Nem toda língua é assim. Em francês europeu, diz-se “madame le professeur Julie Fougère” (ao pé da letra: senhora o professor Júlia Samambaia). Já os canadenses de fala francesa usam, como nós, o feminino: “la professeuse”.

Um contra-argumento ruim, que tem circulado por aí, é que a palavra presidente é formada por derivação do verbo presidir, tal como pedir/pedinte, impedindo o uso do feminino. Esquecem de dizer que o resultado é uma forma nominal, que em português sempre pode ganhar marca de gênero. Governanta também vem de governar, mas ganhou marca de feminino para se referir a uma atividade exercida exclusivamente pelas mulheres. Presidenta tem motivação ainda mais clara. O termo aponta para a primeira brasileira no cargo, dando dupla justificação à marca de feminino: o momento histórico e a luta pela igualdade profissional da mulher.

Por fim, a entrada de novos itens e novas formas é sinal de saúde e força de uma língua. O árabe, o japonês e o inglês primam pela eficiência na incorporação de palavras estrangeiras, adaptando-as às suas fonéticas e alfabetos particulares. Ganham assim mais recurso de expressão, mais versatilidade e abrem as possibilidades de escolha de seus usuários. Em vez de criticar o uso de presidenta, basta pensar que temos duas formas na mão. Que façamos a nossa escolha.


Publicado em O Tempo, 05/02/2011