Beto Vianna e Pedro Perini-Santos
Em 1990, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe assinam o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Em 2008, decreta-se que o acordo passe a vigorar a partir de 2009; e sua efetivação, como prática escolar e editorial, ocorre em 2010. Foram 20 anos de amadurecimento de uma mudança polêmica. Guardiã do bem escrever, a Academia Brasileira de Letras ratificou e instrumentalizou a nova ortografia através do VOLP, o vocabulário ortográfico da língua portuguesa.
O bom de escrever um artigo a quatro mãos é que se pode discordar dentro do texto, até o ponto da contradição. Somos aqui dois linguistas, e o acordo ortográfico está longe de merecer unanimidade. Se eu (Beto) engulo o acordo pelas benesses de uma padronização dos livros didáticos impressos no Brasil e em Portugal, para países que importam esse material, como os africanos e o Timor, eu (Pedro) tenho minhas dúvidas sobre tamanho esforço numa empreitada que mais serve aos interesses de editoras que das populações às voltas com a escrita do português. Para não falar de umas desnecessidades introduzidas pelo acordo, como a queda do acento diferencial (ponto em que, aliás, eu e eu comungamos).
O que estamos de acordo, sobre o acordo, é que isso nada tem a ver com “ataque à língua nacional” (para os detratores do acordo) ou “resgate da identidade lusófona” (para seus defensores). A “Língua Portuguesa” como símbolo transnacional, identidade de povos a ser preservada, imortalizada e, quiçá?, embalsamada a ferro e fogo numa pedra imemorial, é um inútil malabarismo retórico para quem, como nós, se debruça sobre o fenômeno vivo, dinâmico e relacional a que chamamos língua. Além do mais, ortografia não é língua, mas uma técnica (que pode ou não ser aprendida pelo usuário da língua) aplicada ao registo escrito, tomando como modelo uma ou mais variantes da língua. Mudem lá a tal ortografia, e aqui em Minas continuaremos a dizer “djizê”, e, em Lisboa, “dzâr”.
No que eu e eu estamos de pleníssimo acordo é sobre como a Academia Brasileira de Letras erra feio no seu entendimento do que é e do que não é importante quando o assunto é língua. Reza em seu estatuto, que a ABL tem “por fim a cultura da língua e da literatura nacional”. Ou seja, para a ABL, há uma única língua e literatura no país. Como na imagem medieval da donzela casta defendida pelo cavaleiro (em que é a castidade, e não a donzela, o objeto de tanto cuidado masculino) a Academia mostra-se excessivamente ciosa de um modelo engessado de língua, ajudando a marginalizar usuários reais e diversos das línguas brasileiras, variantes ou não do português.
A ira contra o livro didático Para uma vida melhor é exemplar da postura da Academia. Na esteira de dúzias de intelectuais pelos jornalões afora, os imortais meteram a ripa no livro, com o argumento nocivo (dada a auto-investida autoridade da ABL) para milhões de brasileiros, de que a única e boa língua portuguesa é a prescrita na norma padrão. Como o que é ruim para o Brasil é ruim para Minas, nossos acadêmicos estaduais copiaram e colaram o ataque: “A apologia do erro; “nós vai” ou “os livro”, não levará o país e sua juventude a ascender socialmente com oportunidades profissionais, introduzindo-os no vasto universo cultural”, diz o secretário geral da AML. Não é curiosa, secretário, a coincidência entre décadas de preconceito contra os “maus falantes” e a pobre situação em que nos encontramos hoje? Perdoai os imortais, Senhor, eles não sabem o que falam. O combate aos estrangeirismos é outro lado dessa moeda podre. Em recente artigo no jornal O Tempo, um jurista vaticina que a “ameaça de colonização começa com a usurpação da língua. A história mostra que Roma tendeu à decadência quando seu povo desprezou o latim puro, acolhendo o castrense.” Segue exortando a ABL, sediada no Petit Trianon, no Rio, a defender a pureza do idioma, sonhando haver um ou dois vocábulos do português sem nascença em outra língua.
Tem coisa mais útil a ser feita por uma Academia, Brasileira, e de Letras.
A diversidade linguística e cultural do país merece mais cuidado, e um deles é parar de falar que no Brasil só há uma língua. Muitas das línguas faladas no Brasil estão morrendo, e isso não é choramingo piegas, mas uma ameaça cotidiana às pessoas, com consequências reais de discriminação escolar, social, médica e racial. Hoje, fala-se em racialização da linguagem, pois se associam, ao uso de línguas periféricas, julgamentos de valor moral, comportamental e estético. Mesmo no caso do português, é urgente mudar nossa atitude política. Tradicionais menções ao falar “errado”, “feio”, que “dói aos ouvidos” ignoram o fato de que as línguas são (bem) aprendidas na família e na comunidade, não nos bancos escolares (ao contrário da escrita e da norma padrão), ajudando a manter a maioria da população no seu devido lugar de baixo. Se nós, citadinos, não passamos pelo constrangimento de não nos fazermos entender falando o português brasileiro, é porque outras línguas permanecem escondidas, encabuladas e desconsideradas por instuições de referência. Como a ABL.
Distinto é o caminho seguido por nossa prima Acalan, a African Academy of Languages, empenhada no reconhecimento das línguas africanas, postura política e educacional de inclusão de grupos sociais e étnicos isolados por não serem habilitados na língua oficial de seus países. Dos 20 países de maior diversidade linguística, 19 são africanos, com quase metade das 6.000 línguas do mundo, altos índices de pobreza e populações que em sua maioria não falam a língua oficial, milhões de pessoas que precisam estudar, ler, escrever e negociar usando uma língua estranha. No Brasil, são 200 línguas, a maior parte pouco faladas e ainda menos escritas. Isso ocorre com as línguas indígenas e nas comunidades afrodescendentes, européias e asiáticas que compõem nossa diversidade cultural e linguística. Quando uma língua morre, morre muita coisa junto: receitas farmacológicas, relatos históricos, códigos de conduta, taxonomias naturais, tradições alimentares, poesia, música, o escambau. Morte lenta e sofrida na carne por quem vive e participa da língua.
Ou bem se muda o nome para Academia do Português Padrão, ou muda o foco da instituição. Se for Brasileira a Academia, que se preocupem mais os acadêmicos com as línguas de solo pátrio. Se isso for pedir muito, que se ocupem ao menos com os destinos dos seus falantes. Nós, brasileiros, agradeceríamos eternamente.
Publicado no jornal O Cometa Itabirano, agosto/2011